1Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil
O texto apresenta alguns resultados de pesquisa sobre como crianças e jovens aprendem yorubá, uma língua africana viva praticada em candomblés no Brasil. O estudo se desenvolveu em um terreiro na Baixada Fluminense, no Rio de Janeiro, entre abril de 2012 e setembro de 2013. Partilhamos da mesma compreensão de Alves (2010), para quem os muros das escolas são criações imaginárias e que aprendemos todos dentro e fora das escolas, ou seja, em redes educativas. Entendemos os terreiros como estando nessas redes tecidas por cantos, comidas, folhas, mitos, artefatos. O yorubá perpassa todos esses saberes, como um fio de linguagem que acende, organiza e mantém a comunicação dos membros dessa comunidade. A pesquisa também nos mostrou que o conhecimento dessas culturas, incluindo uma de suas línguas, pode sugerir pistas para o ensino de história da África, bem como diminuir a intolerância religiosa nas escolas.
PALAVRAS-CHAVE redes educativas; yorubá; história da África; intolerância religiosa
ork educations; yorubá; African history; religious intolerance
NOTAS INICIAIS1
Omolocun ajeun bó, omolocun/Omolocun ajeun bó, omolocum. A cantiga é entoada nos terreiros de candomblé de Kétu2 para as rodas do Òrìṣà Logun Edé. Apenas uma frase, repetida duas vezes, em yorubá3 e precisamos desdobrá-la em muitos sentidos. Òrìṣà,4por exemplo, muitos candomblecistas entendem os Òrìṣà como forças da natureza; outros, como Deuses ligados a essas forças. Para Santos (1986), alguns autores sustentam que os Òrìṣà são ancestrais divinizados, chefes de linhagens ou de clãs africanos que, por meio de atos excepcionais durante suas vidas, transcenderam os limites de sua família ou de sua dinastia, passando a ser cultuados por outros clãs até se tornarem entidades de culto nacional. Nos terreiros de candomblé, acredita-se que é possível lidar de diferentes formas com essas entidades, com a energia dessas entidades. De Logun Edé, digamos, para resumir drasticamente, que é um Òrìṣà caçador e pescador. É filho dos Òrìṣà Ọ̀ṣọ́ọ̀si e Ọ̀ṣun, assumindo características de ambos. Justamente por isso, suas narrativas ensinam que ele vive metade do ano nas matas (domínio do pai) e a outra metade nas águas doces (domínio da mãe).
A cantiga que abre esse texto diz que Logun Edé “come todo omolocum”. Já omolocum é uma comida ritual de Oṣun, mãe de Logun. Para fazer o omolocun, a Ìyá Bassé (responsável pela comida) reúne delicadamente erèé (feijão e, no caso específico, o feijão fradinho), edé (camarão), àlùbósà (cebola), epo dídùn (azeite doce) ou pupa (azeite de dendê), eyin (ovos), sendo que cozidos.
De acordo com Napoleão (2010, p. 5), o yorubá (sobre o qual nos aprofundaremos adiante) é um dos duzentos e cinquenta idiomas falados, ainda hoje, na Nigéria. “É também uma das línguas naturais faladas em alguns outros países da África Ocidental, a saber, as repúblicas do Benin (antigo Daomé), Togo e Gana”. Tal como outras, chega até nós no período da escravidão. Seu último refúgio, diz Beniste (2006), foi nas comunidades de candomblé, chamadas roças, casas, ilè, que utilizam elementos culturais nagôs. Tem sido mantida por meio de cânticos, rezas e expressões diversas.
Ela nomeia, por exemplo, os cargos adquiridos pelos iniciados e iniciadas como, não só a Ìyá Bassé, que já vimos aqui, mas todos os outros cargos, desde a Ìyálòrìṣà (literalmente, a mãe que cuida dos Òrìṣà, mais conhecida como mãe de santo) ou o Bàbálóriṣà (pai de santo), até o abíyán(aquele ou aquela que participa do terreiro, mas não é iniciado ou iniciada). Nomeia os rituais, como o Àṣèṣè, realizado quando morre um filho ou filha de santo. A respeito desses ritos aprendemos com Munanga que diferentes culturas africanas vivem em familiaridade com a morte, sendo esta apenas um momento do círculo vital, que não prejudica a continuidade da vida. Isso não significa ou não impede, de acordo com ele, que a morte provoque uma desordem tanto na linhagem como na comunidade do morto. “Os ritos funerários servem justamente para contornar de forma simbólica a desordem e restaurar o equilíbrio emocional do grupo abalado pela morte” (Munanga, 2007, p. 32).
A pesquisadora Nilda Alves (2010) há muito vem reafirmando suas preocupações com a importância dos múltiplos espaçostempos5 nos aprendizados tanto de estudantes como de professores e professoras. Sua principal defesa é de que a formação se dá em múltiplos contextos. Para ela, é preciso compreender que os muros das escolas são criações imaginárias e que vivemos e aprendemos todos dentro e fora das escolas, ou seja, em redes educativas. Acreditamos que os terreiros de candomblé, com toda sua produção histórica, material e simbólica, com todo seus modos de vida, e, portanto, com toda sua cultura,6 estão nessas redes educativas. Redes tecidas por danças, cantos, comidas, rezas, folhas, mitos, artefatos, gestos e segredos. Redes tecidas pela história desses povos. O yorubá é uma das línguas que conduz esses saberes, como um fio de linguagem que acende, organiza e mantém a comunicação de crianças, jovens e adultos de candomblé.
METODOLOGIA
Há maneiras distintas de lidar com essa e outras línguas nos terreiros e entre seus membros. Alguns compreendem mais e outros menos o significado daquilo que cantam ou falam, e acham isso muito importante. Outros não acham necessário entender completamente a tradução das cantigas e acreditam na importância do ritual, mesmo sem a compreensão de todo seu conteúdo. Não se trata aqui de julgar, de modo algum, o que cada terreiro pratica nessa relação. Trata-se apenas, como veremos, de partilhar como a casa onde a pesquisa foi realizada se comporta.
A oralidade manteve entre nós os candomblés e suas línguas. As histórias das casas, de seus fundadores, de suas ligações ancestrais com África, os muitos e diferentes rituais, as cantigas, as receitas, os segredos. Tudo passado de candomblecista para candomblecista através de gerações, trazendo essas culturas desde a escravidão até nossos dias. No que se refere ao yorubá, na grande maioria dos terreiros de Kétu, o mais comum é a repetição das palavras em rezas, cantos, ou no trato cotidiano em que as expressões nesse idioma são necessárias até que todos ou quase todos se expressem de forma semelhante. Diz assim o pesquisador Ruy do Carmo Póvoas (1989, p. 9):
O candomblé da Bahia tem suas origens perdidas nas senzalas, onde os negros escravos transmitiam aos seus filhos os segredos dos Òrìṣà, a fé em Ọlọ̀run e a esperança em Óṣàlá. Esses segredos resistiram a toda forma de opressão evangelizadora católica, à perseguição policial e a toda sorte de repressão e preconceitos. Não aceitando a escrita para registrar e perpetuar os segredos dos Òrìṣà, a comunidade do candomblé confiou apenas no sistema de transmissão boca-ouvido. E, durante 400 anos, assim tem acontecido na Bahia, cada geração velando e transmitindo o preceito.
O mesmo Póvoas assegura que, vivendo em sociedade de língua portuguesa, o candomblecista precisa manejar a língua de sua religião para estabelecer o diálogo entre homens e divindades e, assim, termina bilíngue (idem, p. 19). Por sua vez, Castro (2001, p. 68) também identifica um imenso repertório de base iorubá nessas comunidades, sem, contudo, que isso signifique, no seu entendimento, uma “competência linguística”.
O que vemos nos cotidianos de terreiros é que, sim, os candomblecistas reúnem um vocabulário muito grande de palavras em yorubá e as utilizam, em geral, não como uma segunda língua, mas em uma mistura singular de português, yorubá (e mesmo outras línguas africanas), como em uma corriqueira frase: “pegue o obé e corte o ilá” (pegue a faca e corte o quiabo). O interesse de nossas pesquisas é pelas redes de saberes e significações no candomblé. Contudo, neste momento, preocupamo-nos em compreender o aprendizado do yorubá e seu uso nos terreiros, seja qual for o caminho percorrido na relação de aprender, ensinar e manter a língua.
Como opção metodológica para nos aproximarmos de nossos objetivos, observamos (de abril de 2012 a setembro de 2013) o Ilé Àṣẹ Omi Laare Ìyá Saba, terreiro de candomblé Kétu, localizado em Santa Cruz da Serra, município de Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, Rio de Janeiro. Nesse terreiro, todos os filhos e filhas da casa possuem um caderno/diário7 que começa a ser usado e experenciado a partir de sua iniciação, onde registram os rituais, os mitos e as trocas. Mesmo os sonhos são estimulados a ganhar um corpo de escrita. O vocabulário e as rezas em yorubá também são registrados. Simultaneamente, a fala, a oralidade, continua sendo praticada em yorubá. Oralidade e escrita não são vistas como oposição ou dicotomia, mas como complementos.
Além da observação frequente, consultamos bibliografia sobre o tema e conversamos com o Bàbálórìṣà8 Daniel ti Yemọjá,9 responsável dessa casa. Entrevistamos quatro candomblecistas dessa mesma casa (duas crianças, sendo uma de 8 e outra de 9 anos, e dois adolescentes, sendo um de 16 e outro de 18 anos). Gravamos conversas e registramos imagens nos cotidianos tão citados nas respostas sobre a forma como se aprende yorubá nesse lugar, que não é escolar, mas é impregnado de processos educativos que tecem sentidos para os que participam de sua cultura.
Inicialmente intuíamos que as diferentes relações com esse idioma nos revelariam preciosos saberes, como dissemos, para além dos imaginários muros das escolas. Durante o processo, passamos a intuir que essas relações também podem ser pistas potentes para estimular a colocação em prática da lei n. 10.639/2003 (que tornou obrigatória a inclusão no currículo oficial da temática história e cultura afro-brasileira). Modificada em 2008, a lei passou a incluir o ensino de culturas indígenas (lei n. 11.645/2008). Intuímos mais ainda: quem sabe as relações com esse idioma e saberes também contribua para enfrentar discriminações e intolerâncias religiosas, tão presentes nos cotidianos escolares. É sobre as reflexões encontradas que seguiremos partilhando.
ÀGÒ, MO TÚNBÁ, MO DÚPÉ
“Com licença”. “Pedir e dar a bênção”. “Eu agradeço”.
Patryck Malheiros, no terreiro, é Patryck ti Ògún. Ele tem 9 anos e é Olóyè, uma pessoa que possui um título, um cargo no candomblé. O menino foi iniciado aos 7 anos, e seu o cargo é Ogan. Ele toca os atabaques nos rituais, além de desempenhar outras funções extremamente importantes no terreiro. É chamado por todos de Ogan Patrick, e ninguém se refere a ele sem chamá-lo de “senhor”. Como outras pesquisas já enfatizaram (Caputo, 2012), no terreiro, a idade iniciática é definidora, ou seja, o tempo que a pessoa tem de santo é mais importante que a idade civil, e inverte a lógica adultocêntrica da sociedade, de forma geral, e das escolas, mais particularmente. Não significa dizer que os mais velhos não são importantes, pelo contrário, mas significa compreender que crianças e jovens são tão respeitados quanto.
Ogan Patryck fala muitas palavras em yorubá, “principalmente no barracão, quando temos função”, explica. O barracão é o lugar10 onde acontecem as festas, os rituais consagrados aos Òrìṣà. E “ter função” significa ter algum ritual. Perguntamos: “Como o senhor aprende?”. “Ouvindo, olhando, escrevendo no caderno, lendo, estudando”, ele declara. “Mas o senhor aprende sozinho?”, queremos saber. “Sozinho não. As pessoas vão cantando e a gente aprende”, responde. Ogan Patryck também explica que durante os rituais ele repete as palavras em yorubá e só depois anota no caderno, procurando saber com os mais velhos de santo, principalmente com Bàbá Daniel, a forma correta da grafia das palavras em yorubá. Sobre os momentos em que mais fala a língua africana, o menino diz: “Em geral falamos normal, porque as pessoas mais novas na casa não entendem. Usamos mais o yorubá quando falamos com um Òrìṣà e nas cantigas”.
O processo de aprendizado é narrado de forma semelhante por João Vitor, de 8 anos, iniciado no Candomblé desde os 4 anos. No terreiro, ele é Ọmọ Ọba Àṣẹ João Vitor ti Airá. Ou seja, “filho do rei de Àṣẹ11 João Vitor de Airá”.12 Assim como Patrick, seu irmão de santo, ele aprende a língua cantando e rezando e, sobretudo, afirma, com o Bàbá Daniel. Sempre chamado de Omorobá, João Vitor evidencia o mais importante elemento de aprendizado nos terreiros. “Eu olho para as pessoas e aprendo, mas também ensino cantigas e ensino a tocar”. As trocas espalhadas nas redes educativas dos terreiros distribuem os conhecimentos. Pelo que pudemos observar, destas, participam em iguais condições crianças, jovens e adultos, respeitando-se sempre as hierarquias dos cargos e o tempo de iniciado.
Lincoln Ferreira de Mattos tem 16 anos, foi iniciado aos 13 e é chamado de Dofonitinho de Oṣalá.13O termo Dofonitinho significa que ele foi a segunda pessoa de seu barco de iniciação. A primeira pessoa do barco é “Dofono”.14 A convivência cotidiana também é destacada por ele como fundamental para o aprendizado da língua. “As pessoas pedem algumas coisas em yorubá, então a gente vai aprendendo, repetindo; as pessoas explicam, e assim a gente vai aprendendo e memorizando as palavras”. Mas o Dofonitinho de Oṣalá lembra que existe um período dedicado especialmente ao aprendizado das práticas, das danças, das rezas, das cantigas e da língua.
“No hunkó, o quarto em que ficamos recolhidos para iniciação, a gente conhece as rezas, depois as cantigas. A gente vai sabendo com o tempo as danças rituais também. Depois o Bàbálórìṣà ensina ou traduz para a gente, e a gente entende mais ainda”. Perguntamos se apenas o Bàbá ensina, e o Dofonitinho responde: “Ah, depois, quando algum irmão não escuta ou não entende direito, aí os outros irmãos falam para a gente: olha, o significado é isso, isso e isso. A gente vai conhecendo mais”. Perguntamos também se é parecido com aprender na escola, e ele afirma que não:
Não, porque na escola é um jeito mais formal de se falar. Ah, é diferente. No barracão a pessoa ri, brinca, vai falando alguns assuntos, não é só uma pessoa que fala. Aqui, uma pessoa tem conhecimento e passa, e os outros podem passar para os mais novos. Na escola, só professor é o líder que passa para todo mundo. E os alunos não passam para os outros que perderam. Aqui todo mundo passa para todo mundo.
Mais uma vez, uma rede de aprendizagem coletiva é destacada pelos candomblecistas.
Perguntamos também ao Dofonitinho qual é o modo que ele mais gosta de aprender nesse lugar. “Gosto dos ìtàn, das histórias africanas, porque o nosso Bàbálórìṣà parece que vive a história quando ele conta, e fica mais legal de aprender. Gosto das cantigas também que falam o que os Òrìṣà faziam, seus mitos, tudo em yorubá, aí a gente aprende”.
O Dofono Nicolas ti Oṣalá, de 18 anos, fala sobre as primeiras palavras que, em geral, todos aprendem quando começam a vivenciar o espaço dos terreiros. E não é à toa que sejam justamente essas, já que estão relacionadas a um comportamento de humildade e fraternidade esperado de cada filho ou filha de santo. “Àgò quer dizer pedir licença; mo túnbá é pedir e dar a benção; mo dúpé é agradecer. Aprendemos na prática, na vivência de todos os dias. Mas às vezes o Bàbá, o pai de santo, senta e começa a explicar para todos, geralmente na cozinha, mas na maioria das vezes é na prática”, revela o Dofono, que também nos diz o que ele considera como o mais importante do aprendizado da língua.
É como se a gente pegasse uma parte da África e trouxesse aqui para o Brasil. Não teria como ter um curso de yorubá na escola, por exemplo, porque o que a gente aprende, aprende mesmo na prática. Na escola é muita teoria. O professor explica, a gente pega muita coisa, mas não praticamos. Anota no caderno e não praticamos no cotidiano. Aqui não. Aqui, aprendemos e praticamos ao mesmo tempo. É como se nós nascêssemos para fazer um pouco mais devagar, um pouco mais lento.
SE A FALA CONSTRÓI A CIDADE, O SILÊNCIO EDIFICA O MUNDO (provérbio africano)
No prefácio do livro As nações Kêtu, de Agenor Miranda Rocha (2000), Muniz Sodré lembra a frase que usamos neste subtítulo. A máxima, diz ele, é sudanesa, mas representa toda uma atitude generalizada na África e em sua diáspora quanto à comunicação. De acordo com o pesquisador, há uma valorização ética do silêncio como espaço do esclarecimento e da seriedade, enquanto à fala se atribui o perigo da leviandade e da confusão.
Apenas o “perigo”, fique bem claro. O homem que vive a tradição não é mudo, nem silêncio deve ser entendido como mera ausência de verbo. Pelo contrário, silêncio é a realidade que engendra o verbo, que dá à luz a palavra, por ser a força que conduz o indivíduo à sua própria interioridade e à eclosão de uma verdade. Silêncio é coisa de “dentro”, palavra é coisa de “fora” – no jogo ponderado dos dois espaços se faz a comunicação equilibrada do mundo. (Sodré apud Rocha, 2000, p. 9)
Mestre da tradição oral, o maliense Amadou Hampaté Bâ ensina que, quando falamos de tradição em relação à história africana, referimo-nos à tradição oral, e nenhuma tentativa de penetrar a história e o espírito dos povos africanos, para ele, terá validade, a menos que se apoie nessa herança de conhecimentos de toda espécie, pacientemente transmitidos de boca a ouvido, de mestre a discípulo, ao longo dos séculos.
Entre as nações modernas, onde a escrita tem precedência sobre a oralidade, onde o livro constitui o principal veículo da herança cultural, durante muito tempo julgou-se que povos sem escrita eram povos sem cultura. Felizmente esse conceito infundado começou a desmoronar após as duas últimas guerras. (Hampaté Bâ, 2011, p. 167)
Ainda sobre esse tema, Hampaté Bâ (idem, p. 169) nos diz que:
A tradição oral é a grande escola da vida, e dela recupera e relaciona todos os aspectos. Pode parecer caótica àqueles que não lhe descortinam o segredo e desconcertar a mentalidade cartesiana acostumada a separar tudo em categorias bem definidas. Dentro da tradição oral, na verdade, o espiritual e o material não estão dissociados. Ela é, ao mesmo tempo, religião, conhecimento, ciência natural, iniciação à arte, história, divertimento e recreação, uma vez que todo pormenor sempre nos permite remontar à Unidade primordial. Fundada na iniciação e na experiência, a tradição oral conduz o homem à sua totalidade e, em virtude disso, pode-se dizer que contribuiu para criar um tipo de homem particular, para esculpir a alma africana. Uma vez que se liga ao comportamento cotidiano do homem e da comunidade, a “cultura” africana não é, portanto, algo abstrato que possa ser isolado da vida. Ela envolve uma visão particular do mundo, ou, melhor dizendo, uma presença particular no mundo – um mundo concebido como um Todo onde todas as coisas se religam e interagem.
Especificamente a respeito do yorubá nos terreiros, Beniste (2001) acentua que este é um instrumento para a comunicação entre as pessoas em uma sociedade em que tudo o que se faz tem o apoio de rezas, cânticos e declamações nessa língua. Preocupado com a transmissão e manutenção da tradição, esse autor destaca que, dependendo do cuidado com que se fale, pode-se usar o yorubá correta ou incorretamente. Quando usado corretamente, assegura, consagra as normas do candomblé, mas, se usado incorretamente, origina vícios de linguagem e desfigura o próprio idioma.
Como confirmação, basta verificar como são diferentes as formas de expressar as palavras de muitos cânticos, rezas e conversações simples, de terreiro para terreiro. Esta é uma das razões da dificuldade encontrada na tradução para se saber o que se canta e o que se reza. A perda do som original de muitas palavras e os vícios já creditados como corretos impedem a interpretação de certas palavras, que, ao serem traduzidas, não conferem com o desejo do momento. Esta situação vem dando margem a que pessoas, no afã de traduzir, substituam essas palavras por outras que mais lhe convenham, provocando mudança total no sentido daquilo que se deseja naquele momento. (idem, p. 318)
O mesmo pesquisador reforça que a linguagem é a chave cultural de um povo e que, sem rever seus aspectos, origem e formas, não há como constituir religião, já que, muitas vezes, não se sabe o que se canta e o que se reza.
O seu aprendizado será a resposta para muitas dúvidas que existem na religião. Mas não somente em interpretar os cânticos e rezas como forma de curiosidade, mas sim pelo fato de poder sentir mais intimamente, através do seu conhecimento o alto grau de religiosidade que existe nas mensagens. E a sua utilização terá uma extensão maior ao ser empregada também na literatura humana e de uso corrente. (idem, ibidem)
Entrevistado para esta pesquisa, o Bàbálóriṣà Daniel ti Yemonjá concorda com esse pensamento. Por isso, associa uma íntima relação entre a oralidade e a escrita no aprendizado da língua em seu terreiro.
Se não soubermos cantar, rezar e falar direito, perdemos o sentido de nossa língua e os rituais também perdem em significado porque todos precisam compreender o que estão fazendo. Distribuir o conhecimento de uma língua é distribuir poder, assim como prender o conhecimento da língua é segurar o poder. Aqui, o mais importante é partilhar o que se sabe.
Muitos elementos constituem as culturas (os modos de vidas) nos candomblés. A língua, como vemos, é um elemento fundamental. Na introdução desse trabalho, dissemos que o idioma yorubá chega até nós no período da escravidão e se torna a mais comum nas comunidades negras. Contudo, sublinhamos que evidentemente existem outras línguas africanas, períodos distintos de sua penetração no Brasil e fatores diferentes que influenciaram suas propagação e preservação não só nos terreiros, como no próprio português falado em nosso país. Dalby (2011, p. 337) ressalta que, por exemplo, “embora tenha uma densidade populacional inferior à do mundo tomado como um todo, a África possui um grau de complexidade linguística mais elevado do que qualquer outro continente”. Castro também já alertou sobre o que considera pouco rigor científico com que são tratados em vários meios os dados linguísticos, em geral considerados irrelevantes em proveito de temas históricos e socioantropológicos relacionados aos negros no Brasil, razão porque as línguas africanas só eventualmente merecem atenção.
É sempre conveniente lembrar que um dos exemplos mais expressivos, pela sua grandeza e importância histórica, foi o congresso comemorativo dos 100 anos da abolição da escravatura em 1988, que reuniu, em São Paulo, especialistas de várias partes do mundo, inclusive da África. Nele, não houve um só momento para discutir a questão de línguas africanas, uma omissão que pode chegar às raias do absurdo de se reinventar a teoria escravista do africano na condição inumana de “escravo coisa” e que só começou a falar a “língua de gente”, ou seja, articuladamente inteligível aos ouvidos humanos, quando entrou em contato com uma das línguas da colonização europeia, em nosso caso, o português! (Castro, 2001, p. 67)
No terreiro pesquisado, o vocabulário usado é da língua yorubá e, por isso, esse é o idioma que nos move nesta pesquisa. Não podemos tratar profundamente de todos os grupos linguísticos do continente africano (por impossibilidade completa e por não ser nosso objetivo aqui). Mas o livro Falares africanos na Bahia: um vocabulário afro-brasileiro, de Yeda Pessoa de Castro (idem), já destacado, é um importante estudo a ser consultado sobre as línguas de África e contribui contra o estereótipo colonialista, denunciado pela própria autora, de se idealizar uma “África única”, de língua também única. Não o yorubá, mas o grupo banto, diz Castro, entre todos os grupos linguísticos subsaarianos (região do continente africano ao sul do Deserto do Saara), foi o primeiro a despertar a curiosidade dos pesquisadores estrangeiros e a ser estudado relativamente cedo.
O termo banto (bantu: os homens, plural de mantu) foi proposto por W. Bleek, em 1862, na primeira gramática comparativa do banto, para nomear a família linguístca que descobrira, composta de várias línguas oriundas de um tronco comum, o protobanto, falado há três ou quatro milênios atrás. Só mais tarde é que o termo passou a ser usado pelos estudiosos de outras áreas para denominar 190.000.000 de indivíduos que habitam territórios compreendidos em toda a extensão abaixo da linha do Equador, correspondente a uma área de 9.000.000 km2. Seus territórios englobam países da África, Camarões, Guiné Equatorial, Gabão, Angola, Namíbia, República Popular do Congo (Congo Brazzaville), República Democrática do Congo (RDC ou Congo-Kinshasa), Zâmbia, Burundi, Ruanda, Uganda, Quênia, Malaui, Zimbábue, Botsuana, Lezoto, Moçambique, África do Sul. (idem, p. 25)
No Brasil, explica Castro, o povo banto ficou conhecido por denominações muito amplas, principalmente congos e angolas, que encerram um sem-número de etnias e línguas distribuídas entre os atuais territórios do Congo e de Angola.
A antropóloga Juana Elbein dos Santos (1986, p. 31) lembra que os africanos de origem bantu,15 do Congo e de Angola foram trazidos para o Brasil durante o período da conquista e espalhados em pequenos grupos por imensos territórios nos estados do Rio de Janeiro, São Paulo, Espírito Santo e Minas Gerais, em uma época de comunicações difíceis e com centros urbanos começando a nascer. Já os nagôs, diz Santos, foram trazidos durante o último período da escravidão e concentrados em zonas urbanas em pleno apogeu dos estados do Norte e do Nordeste, Bahia e Pernambuco, particularmente nas capitais desses estados, Salvador e Recife. Segundo essa pesquisadora, o comércio intenso entre Bahia e a Costa africana manteve os nagôs do Brasil em contato permanente com suas terras de origem. Santos também explica que todos os diversos grupos provenientes do Sul e do Centro do Daomé e do Sudeste da Nigéria, de uma vasta região que se convenciona chamar de Yoru baland, são conhecidos no Brasil sob o nome genérico de nagô, originados de diferentes reinos como os Ketu, Sabe, Ọ̀yọ́, Ègbá, Ègbado, Ijesa, Ijebu. Já o idioma desses povos é o yorubá, este sobre o qual refletimos até agora e praticado no terreiro pesquisado.
Do ponto de vista histórico, a referência de Santos é muito importante, porque contextualiza o fato de a maioria dos terreiros de candomblé no Brasil ser de tradição nagô e porque justamente esse candomblé tenha se perpetuado mais entre nós. No entanto, Nei Lopes (2003) pontua que dentro do quadro da presença afronegra no Brasil, verifica-se uma predominância das culturas bantas, que colaboraram, diz ele, para nossa formação cultural, principalmente por meio de suas línguas, entre elas o quicongo, o umbundo e o quimbundo. Esse pesquisador contesta o que chama de suposta ascendência de línguas sudanesas, como o nagô (yorubá), no panorama das línguas africanas faladas no Brasil à época da escravidão e que teria modificado o falar português em nosso país, e cita outro pesquisador, Renato Mendonça (idem, p. 18), concordando que o “quimbundo, pelo seu uso mais extenso e mais antigo, exerceu no português uma influência maior do que o nagô. Nas palavras de Lopes (idem, ibidem):
De fato, no vocabulário do português falado no Brasil, os termos de origem nagô estão mais restritos às práticas e utensílios ligados à tradição dos orixás, como a música, a descrição dos trajes e a culinária afro-baiana. [...] Tanto na fonética, quanto na morfologia e na sintaxe, as línguas bantas influenciaram decisivamente a língua que se fala hoje no Brasil. Mas é no vocabulário que elas se fazem, de fato, mais presentes. Com efeito, em 1938, no seu livro “Africanos no Brasil”, Nelson de Senna chamava a atenção para a insuficiência dos dicionários então existentes em relação à riqueza vocabular do português falado em nossa terra. E atribuía essa carência à ignorância em que “até muita gente culta, lá na Europa e cá na América” demonstrava em relação à vultosa contribuição emprestada por índios e africanos ao idioma de Camões.
Lopes reforça que a ignorância apontada por Senna é, no seu entender, fruto de uma visão eurocêntrica que, durante muito tempo, norteou os estudos acadêmicos no Brasil e destaca:
Uma universidade permanentemente debruçada numa imaginária janela de onde se descortinariam o Mediterrâneo, o Báltico, etc. não via e nem podia ver o que tinha atrás de si, ao seu lado e aos seus pés: um estonteante universo de palavras sendo criadas a cada momento na boca daquele negro já não tão banto nem sudanês, porque brasileiro. (idem, ibidem)
A própria palavra candomblé, por exemplo. De acordo com Berkenbrock (1998), provavelmente vem de candom, uma espécie de tambor. Mas a terminação “blé” não é conhecida nas línguas sudanesas, como o yorubá. No entanto, encontramos kandombélé em várias línguas bantu, significando “rezar”. Além disso, o samba, o jongo, as congadas, a capoeira de Angola também são importantes aspectos de nossa cultura e que foram trazidos pelos bantos.
De maneira alguma queremos reforçar uma disputa a respeito de qual é o melhor, o mais “autêntico” ou o mais importante legado africano entre nós, principalmente entre os praticantes de candomblés. Isso em nada beneficia as religiões de matriz africana. Pelo contrário. Acreditamos na importância de todas essas culturas e reforçamos a necessidade de novos e cada vez maiores estudos sobre o aprendizado de crianças e jovens de terreiros. A nós, por exemplo, agradaria muito conhecer terreiros de origem angolana (são muitos no Brasil) e perceber como se aprende o conjunto de línguas ali preservadas. Com certeza são práticas tão ricas quanto parecidas de aprendizagens.
Também dissemos no início deste nosso texto que a língua é preservada nas casas de àṣẹ (os terreiros), mas também não se restringe a seus muros. Sim, há muito tempo e cotidianamente usamos diversas palavras de origem banta fora dos terreiros, sem sequer atentar para isso. Palavras como: quitanda, corcunda, carimbo, cachimbo, dengo, cachaça são todas bantas e totalmente incorporadas ao nosso português diário. Caçula (o único termo com o qual chamamos nosso irmão mais novo) é uma palavra banta. Do yorubá usamos, por exemplo, gogó, que veio de gògòngò(pomo de adão), ou jabá, que veio de jàbàjábá (pedaços de um corte de carne, carne-seca). Há, contudo, uma palavra muito importante para o que estamos conversando. A palavra “fé”, que designa tantas diferentes formas de sentir-acreditar-explicar-agir e desencadeia, muitas vezes, tanto ódio contra os candomblecistas (de qualquer nação), tem origem latina e, nesse campo de significado, quer dizer confiança absoluta em algo ou alguém e também adesão a dogmas de uma doutrina religiosa considerada revelada por Deus. Mas, em yorubá, fé significa apenas “querer”, “desejar”. A história das palavras nos fala da história das sociedades, de seus conflitos, de suas belezas.
POTÊNCIAS E POÉTICAS PARA DISCUTIR HISTÓRIA, CULTURAS AFRICANAS E INTOLERÂNCIAS NAS ESCOLAS
Para finalizar este artigo, partilhamos um dos ìtàn, de Ifá, que, como diz o escritor Luiz Antonio Simas, trata-se do corpo literário e filosófico dos yorubás, que está em pé de igualdade com os mais belos sistemas de pensamento que a humanidade concebeu. Lembramos que os ìtàntambém foram apontados pelos entrevistados de nossa pesquisa como um dos elementos muito importantes no aprendizado em terreiros. O próprio Simas relembra o ìtàn e conta que Ọ̀ányìn vivia pelas matas quando recebeu de Olódùmarè o poder para conhecer o mistério das folhas e guardou todas elas em uma cabaça pendurada em um galho de árvore. Um dia, Yánsàn, muito curiosa, enfeitiçou os ventos para que eles derrubassem o galho da árvore e espalhassem as folhas sagradas pela floresta. Os demais Òrị̀à então recolheram determinadas folhas e passaram a considerá-las como suas. Havia, porém, um problema, diz ele. Para se transformar em remédio, a folha precisa ser potencializada pela palavra e pelo canto. Quanto a isso, Simas (2013, p. 52) assegura que:
Só o encantamento pelo verbo é capaz de dotar a folha de seus atributos de cura. A ausência da palavra não potencializa a folha. A utilização da palavra errada transforma em veneno o que poderia ser o bálsamo.
Reafirmamos que entendemos os terreiros como redes educativas, como um lugar de múltiplas aprendizagens. Entre esses múltiplos saberes e significações aprendidos e ensinados, destacamos aqui o yorubá. Para a área da educação, mesmo isoladamente, acreditamos que este já é um aspecto, sem dúvida, de extrema importância. Aprender nessas e com essas experiências seria muito positivo. Mas há outros aspectos que passamos a imaginar ao longo desta pesquisa, e nossa proposta é justamente não considerar esses saberes isolados e confinados.
Sancionada em 9 de janeiro de 2003, a lei n. 10.639,16 que tornou obrigatória a inclusão nos currículos do ensino da história da África e da cultura afro-brasileira, completou dez anos em 2013. Em artigo publicado em 2008, Gomes já identificava as dificuldades para sua realização nas escolas, mesmo decorridos cinco anos de sua aprovação à época de seu texto.
Ainda encontramos muitas resistências de secretarias estaduais, municipais, escolas educadores (as) à introdução da discussão que ela apresenta. Essa resistência não se dá no vazio. Antes, está relacionada com a presença de um imaginário social peculiar sobre a questão do negro no Brasil, alicerçado no mito da democracia racial. A crença apriorística de que a sociedade brasileira é o exemplo de democracia e inclusão racial e cultural faz com que a demanda do trato pedagógico e político da questão racial seja vista com desconfiança pelos brasileiros e brasileiras, de maneira geral, e por muitos educadores, educadoras e formuladores de políticas educacionais, de forma particular. (Gomes, 2008, p. 69)
Passados quatro anos do artigo publicado por Gomes, Oliveira (2012) continua apontando dificuldades para que a lei seja colocada em prática (falta de material didático sobre a história da África e dos negros no Brasil, racismo presente entre crianças e jovens, dificuldade dos docentes em discutir um tema gerador de “muitos conflitos”). O pesquisador afirma que as implicações curriculares e pedagógicas suscitadas pela nova legislação percorrerão um longo caminho até chegar efetivamente às salas de aula.
Gomes também vê no racismo e na desinformação sobre a ascendência africana no Brasil sérios obstáculos à promoção do que considera como uma consciência coletiva que tenha como eixo da ação política a construção de uma sociedade mais justa e igualitária para todos os grupos étnicos e raciais deste país. A autora lembra que o primeiro artigo da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN/1996) afirma que a educação abrange os processos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e manifestações culturais.
Se entendemos que conhecer a nossa história e herança africana faz parte do processo de formação dos sujeitos sociais e se reconhecemos que uma parte significativa da nossa formação histórica e cultural referente à África e à cultura afro-brasileira não tem sido trabalhada a contento pela escola, só poderemos confirmar a importância da inclusão dessa discussão no currículo escolar, mesmo que seja por força da lei. (Gomes, 2008, p. 71)
Se, por exemplo, o menino João Vitor, que entrevistamos para este artigo, pudesse dizer na escola pública em que estuda por que no terreiro é chamado de Omorobá, o quanto de pesquisa já não provocaria? O que significa o nome? De que região da África vem? Quantas línguas existem?
Sabemos que o que propomos não é tarefa fácil, pelo contrário. Diversos jornais17 publicaram em 2012 matérias revelando que alunos em uma escola de Manaus negaram-se a fazer projeto sobre cultura afro-brasileira. Alegando “princípios religiosos”, afirmavam que o trabalho fazia apologia ao “satanismo e ao homossexualismo”. A jornalista Maria Derzi diz na matéria que, por conta própria e orientados pelos pastores e pais, os estudantes fizeram um projeto sobre as missões evangélicas na África, o que não foi aceito pela escola. Em função disso, os alunos acamparam na frente da escola e protestaram contra o trabalho sobre cultura afro-brasileira, atitude, segundo Derzi, que foi considerada um ato de intolerância étnica e religiosa. O professor Raimundo Cardoso, ouvido na reportagem, conta que os alunos também se recusaram a ler obras como O Guarany, Macunaíma, Casa grande e senzala. A justificativa era a de que os livros falavam sobre homossexualismo argumentando que o que havia de errado no projeto seriam as outras religiões, principalmente o candomblé e o espiritismo, e também o homossexualismo, que para os alunos está nas obras literárias. A saída encontrada pelos alunos e alunas foi fazer um projeto baseado na Bíblia.
A realidade de Manaus não é única, já que casos como esses são trazidos em diversos encontros que avaliam a situação da discussão da lei n. 11.645 nas escolas. Na verdade, a consequência é que, em razão de dificuldades como essas, a discussão do tema desaparece das escolas, como vimos ser apontado por Gomes (2008) e Oliveira (2012).
Se, portanto, tem sido uma dificuldade abordar a história da África, mesmo sem tocar em aspectos de suas culturas sobre os quais estamos refletindo aqui, por que propomos trazê-los justamente para os cotidianos dessa discussão? Porque a “pedagogia do conflito”, proposta por Santos (1996), nos parece uma boa perspectiva. Para esse autor, o paradigma da modernidade comporta duas formas principais de conhecimento, uma como regulação e outra como emancipação. De acordo com ele, apesar de as duas formas de conhecimento estarem igualmente inscritas na modernidade, a primeira ganhou primazia sobre a segunda. Em suas palavras:
Esta hegemonia do conhecimento-como-regulação permitiu a este recodificar nos seus próprios termos o conhecimento-como-emancipação. Assim, o que era saber nesta última forma de conhecimento transformou-se em ignorância (a solidariedade foi recodificada como caos) e o que era ignorância transformou-se em saber (o colonialismo foi recodificado como ordem). Como a sequência lógica da ignorância para o saber é também a sequência temporal do passado para o futuro, a hegemonia do conhecimento-como-regulação fez com que o futuro e, portanto, a transformação social passasse a ser concebida como ordem e o colonialismo, como um tipo de ordem. Paralelamente, o passado passou a ser concebido como caos e a solidariedade como um tipo de caos. O sofrimento humano pôde assim ser justificado em nome da luta da ordem e do colonialismo contra o caos e a solidariedade. Este sofrimento teve e continua a ter destinatários sociais específicos – trabalhadores, mulheres, minorias étnicas e sexuais – cada um deles a seu modo considerado perigoso precisamente porque representa o caos e a solidariedade contra os quais é preciso lutar em nome da ordem e do colonialismo. A neutralização epistemológica do passado tem sido sempre a contraparte da neutralização e política das “classes perigosas”. (idem, p. 24)
Trata-se, segundo Santos, de reanimar o passado na direção desse projeto pedagógico que consiste justamente em reconstruir o conflito entre o conhecimento-como-regulação e o conhecimento-como-emancipação. O conflito pedagógico se dará, afirma o pesquisador, entre essas duas formas contraditórias de saber. A primeira como ordem e colonialismo, e a segunda como solidariedade e caos. Reconhecendo a assimetria e a desigualdade nesse histórico campo de lutas, o autor adverte que a pedagogia do conflito é uma pedagogia de alto risco contra a qual não há apólices de seguro, e acrescenta:
A luta é desigual entre uma forma de conhecimento dominante, o conhecimento-como-regulação, e uma forma de conhecimento dominada, marginalizada, suprimida, o conhecimento-como-emancipação, que o campo pedagógico reconstitui por meio da imaginação arqueológica. O reconhecimento desta assimetria é, contudo, constitutiva da experiência pedagógica e a partir dele podem-se imaginar estratégias para reduzir, no campo pedagógico, essa assimetria. Trata-se de inventar exercícios retrospectivos e exercícios prospectivos que nos permitam imaginar o campo de possibilidades que seria aberto a nossa subjetividade e nossa sociabilidade se houvesse um equilíbrio entre o conhecimento-como-regulação e o conhecimento-como-emancipação. (idem, p. 25)
O modelo dominante, para Santos, não reconhece outro tipo de relações entre culturas senão a hierarquização segundo critérios que são tidos como universais, ainda que sejam específicos de um só universo cultural, a cultura ocidental. De nossa parte, acrescentamos que esse histórico campo de lutas na sociedade, e particularmente na escola, constituiu-se estruturalmente pelo racismo. Se por um lado muitas conquistas dos movimentos negros, indígenas e do conjunto de movimentos sociais atravessam a sociedade e a educação (incluindo a lei n. 10.639/2003, substituída pela lei n. 11.645/2008), por outro lado, a resposta conservadora e racista a essas conquistas também se levanta com sua gigantesca força.
No caso específico da história e culturas negras, não acreditamos que subtrair elementos fundamentais dessas culturas, como o candomblé, por exemplo, seja uma saída para se entender o continente africano e sua relação com nosso próprio país.18
Aceitar essa amputação histórica e cultural seria aceitar, mais uma vez, imposições desse racismo estrutural e de seu sistema de ensino. Se as leis que citamos em nosso texto foram grandes conquistas, não podem ser entendidas como concessões. Pelo contrário, acompanhando o pensamento de Santos e de sua “pedagogia do conflito”, sugerimos que trazer essas culturas para o centro da discussão é um caminho potente para desestabilizar contundentemente práticas racistas que se repetem todos os dias nas escolas. Para nós, práticas racistas cotidianas precisam ser problematizadas e enfrentadas por ações antirracistas cotidianas. Mesmo aqui, no interior deste texto, o quanto já nos desestabilizamos com a grafia de um idioma tão fundamental para nossa própria história e que mal conhecemos e estranhamos?
Uma das criatividades sugeridas por Santos ao campo pedagógico emancipatório é justamente a produção do que o autor chama de “imagens desestabilizadoras” que possam abalar o modelo hegemônico e sua hierarquização de culturas e saberes. Diz ele:
Imagens criadas a partir das culturas dominadas e da marginalização, opressão e silenciamento a que são sujeitas, e com elas, os grupos sociais que são seus titulares. Estas imagens desestabilizadoras ajudarão a criar o espaço pedagógico para um modelo alternativo de relações interculturais, o multiculturalismo. Como se trata de um modelo emergente, o tipo de comunicação e de relacionamento que estabelece entre as culturas está ainda pouco estruturado, é de mais difícil aprendizagem e deve por isso ocupar lugar central na experiência pedagógica. (idem, p. 30)
Em nosso grupo de pesquisa, uma de nossas prioridades tem sido justamente a produção, ao longo já de mais de vinte anos, de imagens de crianças e jovens aprendendo e ensinando nos cotidianos de comunidades de candomblé. São crianças e adolescentes que se assumem candomblecistas e cuja coprodução de suas próprias imagens colabora no processo de afirmação e de enfrentamento contra a intolerância. Quanto, talvez, todos nós também não tenhamos sido desestabilizados pelas fotos que trouxeram para este artigo rostos, artefatos, gestos? E, ainda, quanto não somos desestabilizados por narrativas yorubás tão valorosas quanto os mitos gregos, por exemplo, mas para as quais inventamos argumentos para não utilizá-las? Por que podemos recorrer a Prometeu, Sísifo, Eros, tanto nas aulas de história, literatura ou em nossos trabalhos acadêmicos, e não a Ọ̀ányìn, Yánsàn ou Logun Edé?
Ouvimos, para esta pesquisa, pessoas que experenciam o candomblé nos terreiros convivendo com uma língua viva, em um lugar vivo. Crianças e jovens que existem e que nos falaram de uma tradição igualmente viva que os movimenta e afirma. Uma língua carregada de afetos, como destaca Lincoln Mattos, para quem Ṣàngó é a palavra em yorubá que mais ama. “Porque eu amo esse Òrìṣà. Amo tudo o que é relacionado a ele: oṣé, ọbá, àmàlà, ṣẹrẹ,19 aí me interessei mais por essas palavras também. Aprendi as palavras no hunkó, quando conheci os Òrìṣà e fui me ligando a um deles, e olha que esse nem é o meu Òrìṣà, mas fui me encantando por ele, no dia a dia no barracão. Quando eu ouvi o som do Aluja20 tocando no meu coração com o Ṣàngó do meu Bàbálórìṣà dançando, eu me apaixonei por Ṣàngó, e essa passou a ser minha palavra preferida”, afirma o Dofonitinho de Oṣalá.
Já o menino Patryck, o Ogan de 8 anos, diz que a palavra que mais gosta é orò, “porque significa ritual, e são os momentos de rituais que eu mais gosto, principalmente quando o ritual é comigo, quando estou nele”, explica. Para Nicolas C. Melo, de 18 anos, que também apresentamos aqui, sua palavra predileta em yorubá é Àgò por estar ligada a um comportamento ético profundo.
Esta palavra mostra o maior nível de educação e humildade que uma pessoa do candomblé pode demonstrar. Com ela dizemos Àgò, eu errei. Àgò, eu posso passar? Àgò, eu posso falar? E o bonito é que, mesmo quando estamos certos, podemos usar Àgòpara evitar a continuidade de um desentendimento. Não significa que somos inferiores ou submissos, mas que, mostrando humildade e serenidade, podemos evitar desavenças. Gosto de pensar em Àgò como uma palavra que dá uma segunda chance para a outra pessoa, tanto pra quem fala quanto pra quem ouve.
O que aconteceria se esses conhecimentos pudessem ser destacados, valorizados, estimulados por professores e professoras de história e culturas africanas? Será que a ausência do reconhecimento dessas palavras, desses saberes, não tem sido longa demais? Será que quanto mais silenciamento não serão tanto maiores o racismo, o conservadorismo, a intolerância religiosa? É por isso que sugerimos que, ao contrário de aprisionar esses conhecimentos, seja fundamental espalhá-los como as folhas de Ọ̀sányìn foram espalhadas pelo vento de Yánsàn. Não esqueçamos, porém, que o conto de Ifános ensinou que é preciso potencializar o conhecimento pelo verbo e pelo canto. Nossa aposta é que a palavra de crianças e jovens de candomblés, espalhados por todo Brasil, faz isso e pode potencializar a escola. Ewé o asà!21
1Colaborou neste artigo com algumas entrevistas a mestranda do Programa de Pós-Graduação em Educação (PROPED) Marta Ferreira, minha orientanda.
2Tradição vivenciada no culto aos ancestrais e Òrìṣà. Nome que acabou aglutinando várias expressões religiosas de diferentes grupos africanos trazidos durante a escravidão. O significado da expressão será trabalhado ao longo do texto em vários outros momentos.
3Encontramos o termo grafado de modos diferentes pelos autores. Em nosso texto, optamos pela grafia (y)orubá, como escreve o professor José Beniste (2006). Castro (2001) prefere (i)orubá. Decidimos manter a grafia escolhida por cada autor em seus textos citados.
4Sempre que for possível, utilizaremos (em itálico) palavras em yorubá, na forma como se escrevem. Beniste (2006) explica que em algumas letras usa-se um ponto embaixo. “O” e “E” dão um som aberto; sem ele o som será fechado. “Ṣ” adquire o som de “X” ou “CH”, sem o ponto terá o som original da letra “S”. Também não há plural. Fazemos essa opção reconhecendo a importância da oralidade na manutenção dessa língua, mas acreditando também na importância da divulgação de sua forma escrita como mais um elemento do rico conhecimento que circula nos terreiros. Há divergências entre os autores sobre essa prática. Beniste, por exemplo, grafa da forma como apresentamos aqui. Já Castro (2001, p. 20)argumenta que, assim como não escrevemos “English” ou “Deutsch” em lugar de inglês ou alemão, ou “Saint Patrick” e “Munchem”, em lugar de São Patrício e Munique, não há razão, para ela, de escrevermos “yorubá” em lugar de iorubá ou “Eṣu” e “Ṣàngó”, no lugar de Exu e Xangô. Respeitando todas as posições, optamos neste artigo por misturar as grafias e fazer como Beniste e outros, já que inglês e alemão não foram línguas subalternizadas em nosso país, tendo quase desaparecido, mas o yorubá sim, e sua grafia, principalmente para nós que nos dirigimos sempre aos professores e professoras, é de fundamental divulgação. Não é uma posição pétrea e poderemos proceder de outra forma quando acharmos indicado.
5Em seus trabalhos, Alves explica que usa esses termos juntos para indicar que as pesquisas nos/dos/com os cotidianos (na qual nosso grupo de pesquisa se insere) pretende ir além do que vê como dicotomias e limites herdados das ciências modernas. Particularmente, em nossos textos, fazemos essa opção em apenas algumas expressões. Este é um caso.
6Para Raymond Williams (2007), a noção de cultura está impregnada da produção histórica, material e simbólica da sociedade e suas lutas. Cultura, na concepção de Williams, é modo de vida.
7Existe uma pesquisa em andamento a respeito específico desses cadernos sendo desenvolvida pela mestranda Marta Ferreira, sob minha orientação.
9“Ti” preposição “de”, em yorubá. Yemọjá, no Brasil, é a divindade das águas salgadas. O habitual nos terreiros é sempre associar o nome da pessoa ao seu Òrìṣà.
10Partilhamos do pensamento do geógrafo Yi Fu Tuan (1983), para quem o significado de “espaço” é mais abstrato que “lugar”. O que começa como espaço indiferenciado transforma-se em lugar à medida que o conhecemos melhor e o dotamos de valor. Os arquitetos falam sobre as qualidades espaciais do lugar; podem igualmente falar das qualidades locacionais do espaço. As ideias de “espaço” e “lugar” não podem ser definidas uma sem a outra.
12No Brasil, Airá é cultuado como Ṣàngó e, resumindo, outra vez absurdamente, esse Òrìsà foi um rei de Ọ̀yọ́, Deus dos trovões e relacionado à justiça.
13Oṣalá é entendido, segundo Beniste (2001), como o Òrìṣà da criação e dos seres humanos, o principal Òrìṣà funfun – as divindades brancas.
14O grupo de pessoas a serem iniciadas é chamado de barco, que, pela ordem (em geral estabelecida de acordo com os Òrìṣà da casa), são assim denominados: dofono(a), dofonitinho(a), fomo, fomotinho(a), gamo, gamotinho. Em entrevista realizada com o professor de yorubá José Beniste para este artigo, por meio de e-mail, no dia 20 de outubro de 2013, ele explica que essas são palavras usadas nos rituais jeje, porém passaram a ser incorporadas por outros candomblés. Antes disso, afirma, nos candomblés kétu, as pessoas do barco eram citadas como a primeira ìyàwó do barco, a segunda ìyàwó do barco, e assim por diante. A convivência proporcionou novas adaptações. Dofono, dofonitim, fomo, fomotim, gamo, gamotim, domo, domotim, vito, vitotim ainda foram mais adaptadas, ganhando o diminutivo aportuguesado: dofonitinho(a), e assim por diante, sendo pronunciadas desse modo em grande parte das casas de candomblé (por isso mantemos em nosso texto a forma como ouvimos e a forma como também as escrevem nos terreiros).
15Os autores também grafam a palavra “banto” de diferentes formas. Do mesmo modo como fizemos com o termo (y)orubá, continuaremos respeitando a opção de cada autor. Santos (1986), por exemplo grafa bantu. Castro (2001) usa banto. E Lopes (2003) escreve também banto. Este último afirma concordar com Mário Antônio Fernandes de Oliveira (1973 apud Lopes, 2003) quando explica que, ao grafarem pela primeira vez as línguas bantas, os estudiosos europeus viram-se forçados a fazê-lo, naturalmente por meio de caracteres românicos, usando quando necessário alguns sinais diacríticos. Foi assim que, ao ouvirem dos africanos a pronúncia “bântu” [bãtu], os cientistas de fala inglesa a grafaram como se fala; os franceses usaram a forma bantou; e os portugueses preferiram banto, já que, em nosso idioma, o “o” final átono tem som equivalente a “u”. Foi também assim que os gauleses, depois de a afrancesarem, flexionaram a palavra: bantou, bantoue, bantous, bantoues. E os portugueses, no mesmo caminho, fizeram banto, banta, bantos, bantas. Para Lopes, embora atualmente uma orientação científica, inclusive do Centre International des Civilisations Bantu (CICIBA), condene esse recurso, propugnando pela utilização da forma bantu, em todas as línguas, sem nacionalizações ou flexões, sua opção, por motivos práticos e por melhor compreensão, é pela utilização da grafia banto. Utilizaremos a forma escolhida por cada autor, respeitando suas preferências.
16Mantemos a referência de Gomes à lei n. 10.639/2003, pois quando da publicação deste seu artigo, a lei n. 10.639 ainda não havia sido altera pela lei n. 11.645/2008, como já informamos antes.
18Precisamos deixar evidente que não defendemos, em hipótese alguma e sob nenhuma modalidade, o ensino religioso como disciplina nas escolas públicas. O que defendemos é o direito à circularidade de todos os modos de crer e não crer nas escolas. Contudo, enfatizamos que culturas africanas (e afrodescendentes) fazem parte da história da África e não podem ser apartadas de seu ensino.
19Oṣé é o machado de lâminas duplas e ṣẹrẹ é um chocalho, ambos são símbolos de Ṣàngó. Àmàlà é sua comida, e ọbá é rei.
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