O lugar de Marx e Engels na modernidade: raça, colonialismo e eurocentrismo
O materialismo histórico, na época de Marx e Engels, não combatia apenas o idealismo e outras formas filosóficas burguesas. Batia de frente com as teorias racialistas. O marxismo, antes de qualquer “adaptação nacional” nos países dependentes, coloniais e semicoloniais da África, Ásia ou América Latina e Caribe, já estava inclinado a transformar-se numa indispensável arma na luta antirracista e anticolonial.
Por Jones Manoel.
Introdução: o chamado à historicidade
O anacronismo é um dos perigos que espreitam a pesquisa histórica. Um dos principais problemas do debate se Marx e Engels seriam racistas ou eurocêntricos é justamente o anacronismo. Na imensa maioria dos casos, parte-se do debate atual sobre o que é o racismo. Sim, pelos critérios atuais, não tenho dúvidas de que Marx e Engels poderiam ser considerados racistas em certas dimensões. Porém, o conceito de raça, o processo de racialização e o sentido do que é ser racista muda historicamente, tem portanto historicidade. Há, aliás, essa historicidade se dá em dois sentidos interligados: da coisa em si, isto é, da realidade a ser analisada, e das categorias que buscam captar na teoria a coisa em si. Uma história do objeto de análise e das teorias de análise do objeto.
O argumento que venho defendendo faz tempo, seja em curso online (como o meu sobre o marxismo anticolonial), livro, artigo, entrevista, podcast, conferência e afins é que, na cultura brasileira, não compreendemos na qualidade necessária o processo de racialização da modernidade e a dimensão colonial inscrita em toda história dos últimos séculos – tal como as mutações nas formas de negação do Outro e desumanização a partir da raça e dos padrões de dominação colonial e neocolonial. A partir desse argumento (demonstrado em várias oportunidades), afirmo que chamar Marx e Engels de eurocêntricos e racistas é prova de desconhecimento histórico da modernidade e, ironicamente, de como o marxismo foi fundamental no recuo das barreiras coloniais e raciais.
Em suma, se hoje não há de forma generalizada escravidão, regimes de segregação racial, colonialismo no estilo clássico, se hoje a eugenia não goza de prestígio científico, isso se deve também ao marxismo que, a partir dos seus fundadores, combateram os padrões de racismo e eurocentrismo de sua época, permitindo avanços que, em nosso tempo histórico, cria quadros de referência que permitem olhar para os fundadores do materialismo histórico e apontar falas hodiernamente consideradas racistas.
Esse ponto é importante, pois, pelos critérios atuais, fervorosos abolicionistas e lutadores e lutadoras antirracistas do século XIX poderiam ser acusados de racismo. Um exemplo básico do problema do anacronismo: a direita atual ainda não descobriu o flerte da Frente Negra Brasileira com o integralismo no começo do século passado. No dia que descobrir, vai começar a apontar que o movimento negro brasileiro é ou tem potencial fascista. A direita estará certa? Não, e só é possível apontar razão nesse discurso se, ao invés de uma análise histórico-concreta dos sentidos e papel do integralismo na luta política e suas formas de apropriação pela Frente Negra no período, fizermos tão somente uma “análise” tomando os termos e sentidos estritamente atuais do debate.
O mesmo serve para mitos como “Zumbi tinha escravos”, ou outro, muito bem aceito por certa esquerda, de que as organizações de luta armada contra a ditadura empresarial-militar não defendiam democracia e queriam apenas colocar “sua própria ditadura no lugar”. Como se pode ver por esses três exemplos, a defesa integral de uma historicidade crítica (da coisa em si e das teorias que se propõem ser a representação ideal de um movimento real) é uma arma fundamental na luta política.
O objetivo deste escrito não é fazer um balanço completo do tema com foco no debate sobre raça, colonialismo e eurocentrismo na obra de Marx e Engels. Isso já foi feito por nós (junto com Gabriel Landi) no livro Revolução africana: uma antologia do pensamento marxista (Autonomia Literária, 2019), no livro de Domenico Losurdo A luta de classes: uma história política e filosófica (Boitempo, 2015) e no livro de Kevin B. Anderson Marx nas margens: nacionalismo, etnia e sociedades não ocidentais (Boitempo, 2019). Meu objetivo nesta coluna é apresentar o problema e os argumentos de forma mais sintética visando sua utilidade no debate teórico sobre a criação de uma cultura política antirracista revolucionária com os pés radicalmente presos na história.
Modernidade, colonialismo e racismo
A partir do final dos anos 1970 do século passado, virou moda o debate sobre modernidade e pós-modernidade. Esse debate, difundido a partir do mundo acadêmico europeu e estadunidense, reproduz uma tendência de longa duração histórica na formulação teórica do pensamento ocidental dominante: considerar o nascimento da modernidade como um processo idílico de vitória da razão, autonomia do indivíduo, livre mercado, democracia e surgimento do sujeito. A história da modernidade é contada como um acontecimento essencialmente intraeuropeu, um capítulo que começa com o Renascimento (ou com a Antiguidade Clássica greco-romana), passa pela Reforma Protestante, percorrendo o Iluminismo, o surgimento do liberalismo, e as Revoluções Inglesa e Francesa, o desenvolvimento do parlamentarismo e assim por diante.
Dentro dessa abordagem, elementos incômodos, como a escravidão, são tratados quase que como uma reminiscência de um tempo passado que sobreviveu paralelamente e fora do reino da modernidade e da razão até que um dia, finalmente, a História se adaptou à Ideia e a escravidão foi superada. É a partir de visões como essa que, contrafactualmente, se considera que o liberalismo é antagônico à escravidão e defensor por essência dos direitos individuais1. A comédia de erros chega a tal ponto que intelectuais “críticos”, com intenção de combater ou melhorar o liberalismo, falam que no Brasil o liberalismo seria incompleto e contraditório, dada a sua compatibilidade com a escravidão e, posteriormente, com a dominação oligárquica das primeiras décadas da república brasileira2.
Se o liberalismo é tratado como um mito, configurando uma verdadeira hagiografia, outros aspectos fundamentais da modernidade, como o vínculo indissociável entre modernidade burguesa, capitalismo, formas de trabalho não livres (no sentido burguês) e a questão colonial, são apagadas. Aqui, mais uma vez, o processo de ocultamento acontece em vários quadrantes: na esquerda e na direita. Um exemplo bastante ilustrativo é o debate entre Norberto Bobbio e Palmiro Togliatti.
Bobbio, em 1954, afirmava que os “Estados socialistas” tinham realizado uma nova fase de “progresso civil em países politicamente atrasados, introduzindo institutos tradicionalmente democráticos […] e a coletivização dos instrumentos de produção”, mas que faltava a esses Estados, “uma gota de óleo liberal nas máquinas da revolução já realizadas”. O raciocínio de Bobbio é nítido: liberalismo significa por essência limitação do poder central, Estado de Direito e direitos individuais. Togliatti, o grande dirigente do Partido Comunista Italiano, responde assim à crítica de Bobbio:
“Mas quando, e em que medida, foram aplicadas aos povos coloniais os princípios liberais nos quais se disse fundado o Estado inglês do século XIX, modelo, creio, de regime liberal perfeito para aqueles que pensam como Bobbio? A verdade é que a doutrina liberal […] fundamenta-se numa bárbara discriminação entre as criaturas humanas. Além das colônias, tal discriminação se alastra também na própria metrópole capitalista, como demonstra o caso dos negros estadunidenses, em grande parte desprovidos de direitos elementares, discriminados e perseguidos.”
Citado em Domenico Losurdo, 2008, p. 72.
Aliados a isso, os questionamentos prático-políticos dessa visão idealizada do surgimento da modernidade são combatidos ou relegados ao esquecimento. Domenico Losurdo mostra como a Revolução Francesa foi banida do panteão das glórias liberais-modernas a partir de um revisionismo histórico que exalta a Revolução Inglesa e Americana e repudia os ventos da “Marselhesa”3. Um exemplo característico desse revisionismo histórico é o livro Sobre a revolução, da filósofa Hannah Arendt, que considera que a Revolução Americana, ao contrário da Francesa, garantiu a liberdade e a libertação e foi um processo político essencialmente pacífico, uma vez que não trazia a questão social no centro de sua agenda revolucionária – caminho irremediável ao terror e o fracasso, segundo a filosofa. O caráter plebeu da Revolução Francesa e o conteúdo igualitário, assim como a apropriação feita do jacobinismo pelo movimento operário socialista, não explicam por si só o expurgo da Revolução Francesa. Existe outra razão, talvez até mais forte que as anteriores.
A Revolução Francesa foi a única revolução burguesa que pôs em questão a escravidão4. A libertação nacional das Províncias Unidas (Holanda), a Revolução Inglesa e a Revolução Americana deram um impulso gigantesco à escravidão, ao extermínio dos povos originários (chamados genericamente de “índios”) e ao colonialismo. Já os jacobinos ousaram estender os direitos naturais do homem e do cidadão para além do pequeno ciclo de homens, proprietários, brancos e europeus.
Esse, contudo, não foi o único pecado de Robespierre e seu grupo. Eles influenciaram os negros e negras do outro lado do Atlântico a achar que podiam ser incluídos nos direitos universais do homem – e os jacobinos negros, evidentemente, foram bem mais longe na crítica prática à escravidão que os jacobinos brancos. Numa das colônias francesas mais lucrativas do mundo, São Domingos, os ex-escravos se rebelaram, combateram a metrópole e a elite nativa, tomaram o poder, aboliram a escravidão e ousaram ser donos do seu destino
“Mas, enquanto isso, e os escravos? Eles ouviram falar da Revolução [Francesa]e conceberam-na à sua própria imagem: os escravos brancos da França se levantaram e mataram os seus senhores e, assim, passaram a gozar os frutos da terra. Isso era grosseiramente impreciso, de fato, mas eles haviam apanhado o espírito da coisa. Liberdade, Igualdade e Fraternidade. Antes do final do ano de 1789, houve levantes em Guadalupe e na Martinica. Já em outubro, em Forte Dauphin, um dos futuros centros da insurreição de São Domingos, os escravos estavam se agitando e realizando reuniões de massas nas florestas durante a noite. Na Província do Sul, observando a luta entre os seus senhores a favor e contra a Revolução, eles mostraram sinais de inquietação […] Nenhum dos homens que deveriam liderar seus irmãos para a liberdade estava em atividade nesse momento, até onde sabemos. Dessalines, já com quarenta anos, servia como escravo para seu senhor negro. Christophe ouvia as conversas no hotel onde trabalhava mas não tinha ideias construtivas. Toussaint lia sozinho seu Raynal: “Um chefe corajoso é tudo o que é preciso”. Ele diria mais tarde que, desde a época em que os problemas surgiram, sentia-se destinado às grandes coisas.”
C. L. R. James, Os jacobinos negros (Boitempo, 2016, p. 87-8)
Naturalmente, os jacobinos negros, Toussaint L’Ouverture e Jacques Dessaline têm que ser excluídos da história e, como derrotados, banidos para sempre da memória. A partir desse processo de exclusão dos aspectos incômodos da modernidade burguesa, fica difícil lembrar que raça e hierarquização dos povos (bárbaros versus civilizados) não é uma criação eterna, imutável, mas nasce justamente quando surge pela primeira vez uma história universal, o sistema-mundo. Pois é, até o século XVI, não era possível falar de uma história do mundo. Com a estabelecimento do comércio tricontinental centrado na Europa, possibilitado pela invasão colonial na região posteriormente conhecida como América, um dos maiores genocídios de todos os tempos, surge uma nova construção social, histórica e ideológica que fundamenta o sistema de exploração colonial e o tráfico de seres humanos escravizados: a raça5.
Antes do início da modernidade, ao contrário do pensamento de teóricos identitaristas e naturalistas do movimento negro, a raça tal como conhecemos hoje não existia. As diferenças de cor de pele e traços fenotípicos não conformaram um sistema de significados sociais com derivações práticas estruturantes nas formas de sociabilidade. Se é possível achar, desde o começo da história humana, comentários referentes a um processo de estranhamento do Outro a partir de traços fenotípicos diferenciados, só com a modernidade esses traços ganham contornos estruturais de marcadores sociais.
Se durante muito tempo esse idealismo da raça teve uma forma de explicação teológica, com a laicização do pensamento ocidental, no bojo do Iluminismo e da Revolução Burguesa, a ciência entrou em cena para legitimar a metafísica racial a partir de disciplinas como a biologia, a antropologia criminal e a sociologia. É curioso como há um sistemático ocultamento da racialização na produção teórica burguesa moderna. O livro didático que trabalho em sala de aula é um bom exemplo disso: ao apresentar o Liberalismo e o Iluminismo, buscando sumarizar as principais ideias de alguns dos pensadores mais destacados desses movimentos, como John Locke, Adam Smith, Barão de Montesquieu, Alexis de Tocqueville, John Stuart Mill e outros, nenhuma palavra é dita sobre o apoio desses homens à escravidão e/ou ao colonialismo a partir de noções naturalistas de raça6.
A raça enquanto chave de estruturas sociais e significante simbólico é um componente central em todas as correntes teórico-filosóficas e em quase todos os autores do pensamento ocidental na modernidade burguesa. Porém, existe uma tradição teórica e política que tenta escapar a essa tendência histórica de longa duração: o marxismo.
O lugar de Marx e Engels na modernidade burguesa
Domenico Losurdo afirma, corretamente, que existe na modernidade burguesa uma filosofia da história constituída por um universalismo agressivo e colonizante que tende a ver o Ocidente como o máximo da civilização em uma missão eterna e inescapável de extirpação da barbárie e do atraso nos quatro cantos do mundo. O “fardo civilizatório” do homem branco é apenas um dos episódios mais caricatos dessa história, mas de forma alguma o único (Contra-história do liberalismo, p. 6-65). Nos dias atuais, essa filosofia da história se expressa nas diversas formas de agressão que os Estados Unidos e sua máquina de guerra (seguidos de perto pelos seus sócios menores como a União Europeia) impõem à Venezuela, Cuba, Coreia Popular, Irã, China, Vietnã e outros países “incivilizados”.
Em um balanço crítico da obra de Marx e Engels, Losurdo mostra como os dois fundadores do materialismo-histórico em alguns momentos acabaram deslizando nessa ideologia burguesa. É conhecida, por exemplo, a exaltação chauvinista do roubo da Califórnia dos mexicanos feita por Engels; ou algumas análises de Marx sobre os Estados Unidos que pareciam desconsiderar a escravidão e a sorte dos povos originários (“peles vermelhas”) ao afirmar que no país a “emancipação política já foi realizada”7. Uma análise sistemática e da totalidade do pensamento de Marx e Engels, porém, mostrará que no decorrer da sua evolução esses dois pensadores conseguiram recusar completamente, considerando seu lugar histórico, essa filosofia da história burguesa8.
Demostremos isso a partir de quatro questões. Primeiro, Marx e Engels, ao contrário de toda tradição dominante de sua época, negaram qualquer paradigma naturalista e racialista na construção de sua crítica da economia política e teoria social centrada no conflito de classes. A análise marxiana é radicalmente histórica. Quando Marx diz em “Trabalho assalariado e capital”, por exemplo, que um negro é apenas um negro e que ele só se torna escravo em condições históricas determinadas, a afirmação é não uma coisificação do negro, mas uma negação radical de qualquer idealismo da raça (ou naturalização racialista da escravidão), chamando atenção para as condições histórico-concretas do desenvolvimento do tráfico de seres humanos escravizados na lógica mercantil9 – Marx e Engels também combateram as explicações psicopatológicas dos processos sociais, tendência em voga nos pensadores do século XIX para “explicar” os processos revolucionários10.
Hoje foi quase banido da história um dado básico da cultura ocidental hegemônica até a primeira metade do século XX. Qual dado? A leitura racial da sociedade não era privilégio da Alemanha Nazista (nunca é demais lembrar que o regime de segregação racial nos Estados Unidos durou, oficialmente, até 1965), era um consenso dominante no Ocidente, tendo inclusive servido de espelho para as classes dominantes locais de toda periferia, a ponto de existirem, nos quatro cantos do mundo, regimes de supremacia racial ou Estados com políticas eugenistas. A própria palavra “racismo” não tinha uma conotação negativa: significava a justa e necessária separação entre as raças para evitar a degradação da “raça branca”, “ariana” ou “nórdico-germânica”. Quando em 1936 a União Soviética criminalizou o racismo e reforçou ainda mais a política cultural, educacional e científica de igualdade racial, ela estava isolada11. Nadava contra a corrente.
O termo “racismo” só passou a ter uma conotação universalmente negativa ao final da Segunda Guerra Mundial, depois da vitória da União Soviética sobre o nazismo e o início da revolução anticolonial no mundo – acontecimento que também marcou o abandono das teorias socais de chave explicitamente racialista. O materialismo histórico, na época de Marx e Engels, não combatia apenas o idealismo e outras formas filosóficas burguesas. Batia de frente com as teorias racialistas. Este trecho clássico de Marx, se bem lido no seu contexto histórico, revela uma revolução teórico-política:
“O resultado geral a que cheguei e que, uma vez obtido, serviu-me de guia para meus estudos pode ser formulado, resumidamente, assim: na produção social da própria existência, os homens entram em relações determinadas, necessárias, independentes de sua vontade; essas relações de produção correspondem a um grau determinado de desenvolvimento de suas forças produtivas materiais. A totalidade dessas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem formas sociais determinadas de consciência. O modo de produção da vida material condiciona o processo de vida social, política e intelectual. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser; ao contrário, é o seu ser social que determina sua consciência.”
Karl Marx, Contribuição à critica da economia política (Expressão Popular, 2008)/Emir Sader e Ivana Jinkings (orgs.) As armas da crítica: antologia do pensamento de esquerda.
Note a ausência de qualquer paradigma de determinismo racial, climático ou psicopatologizante. O que hoje é normal e trivial – isto é, explicar as relações sociais a partir do estudo de relações sociais construídas historicamente –, não era no período de Marx e Engels. O materialismo expresso no trecho acima não é apenas o sintoma de uma luta contra o idealismo, mas também contra paradigmas racializantes, como o de um dos pensadores mais prestigiados da Europa no século XIX, o liberal Herbert Spencer (contemporâneo de Marx e Engels e famoso pelo chamado “darwinismo social”).
O segundo aspecto é que Marx e Engels são críticos do colonialismo. Essa crítica ao colonialismo opera em duas dimensões. Os dois pensadores foram ardentes defensores da emancipação nacional da Irlanda e Polônia, os dois principais símbolos europeus da política colonial (importante destacar que mesmo “brancos”, numa perspectiva biológica, esses povos eram racializados e tratados como não-brancos pelo colonialismo do período). Essa defesa da Polônia e da Irlanda, inclusive, é feita contra membros da Internacional dos Trabalhadores que consideravam, assim como alguns “marxistas” posteriores, que essas lutas nacionais eram desvios da luta de classes.
Marx e Engels mostraram com precisão que, nesses países, a questão social assume uma dimensão nacional e, em vários momentos de suas obras e atuação política, instigavam o proletariado inglês a combater o colonialismo de “sua” burguesia12.
Marx e Engels foram ainda mais fundo. Adiantando a indispensável formulação de Lênin sobre a aristocracia operária e a questão colonial, os autores do Manifesto Comunista perceberam a dialética entre questão colonial e amoldamento à ordem do proletariado inglês, mostrando que os superlucros da burguesia inglesa auferidos com a colonização da Irlanda serviam como contraponto às vitórias da economia política do trabalho sobre o capital. Não poucas vezes, os dois revolucionários ligaram diretamente o persistente reformismo dos trabalhadores ingleses ao martírio dos irlandeses, constatando que a revolução socialista na Inglaterra e a libertação nacional irlandesa eram duas faces da mesma moeda – ainda é útil pontuar que análise parecida foi desenvolvida em relação ao Sul escravagista dos Estados Unidos e o movimento operário do Norte, onde o trabalhador de pele clara se comportava como um “senhor” frente ao trabalhador de pele negra.
“O trabalhador inglês comum odeia o trabalhador irlandês como um concorrente que rebaixa seu salário e seu padrão de vida; também alimenta contra ele antipatias nacionais e religiosas. É exatamente o mesmo modo como os brancos pobres dos estados sulistas da América do Norte se comportavam em relação aos escravos negros. Esse antagonismo entre os dois grupos de proletários no interior da própria Inglaterra é artificialmente mantido e alimentado pela burguesia, que sabe muito bem que essa cisão é o verdadeiro segredo da preservação de seu próprio poder.”
Algumas linhas depois, Marx conclui:
“Finalmente, o que a Roma Antiga demonstrou numa escala gigantesca pode ser observado na Inglaterra de hoje. Um povo que subjuga outro povo forja suas próprias cadeias.”
Karl Marx, “A Irlanda e a classe trabalhadora inglesa 1864”, em Marcelo Musto (org.) Trabalhadores uni-vos: antologia política da I Internacional (Boitempo, 2014, p. 276)13
Fora da Europa, a crítica ao colonialismo também foi mordaz. Se, no Manifesto Comunista e na Miséria da filosofia, o colonialismo não aparece às vezes com ares de condenação explícita e, em alguns trechos, Marx e Engels tratam do tema com certo lirismo, na evolução posterior dos dois pensadores, especialmente a partir da década de 1860, a crítica ao colonialismo é devastadora. É bastante conhecido o capítulo do Livro I d’O capital sobre “a assim chamada acumulação primitiva”, no qual Marx refuta o mito liberal do surgimento do capitalismo a partir de um processo idílico e pacífico de uma “elite” laboriosa e disciplinada que soube poupar e acumular riquezas. Marx liga de maneira indissociável, a partir de um genial mapeamento histórico, o surgimento do modo de produção capitalista às barbáries do colonialismo. Diz Marx:
“A descoberta das terras auríferas e argentíferas na América, o extermínio, a escravização e o soterramento da população nativa nas minas, o começo da conquista e saqueio das Índias Orientais, a transformação da África numa reserva para a caça comercial de peles-negras que caracterizam a aurora da era da produção capitalista. Esses processos idílicos constituem momentos fundamentais da acumulação primitiva. … na Inglaterra, no fim do século XVII, esses momentos foram combinados de modo sistêmico, dando origem ao sistema colonial, ao sistema da dívida pública, ao moderno sistema tributário e ao sistema protecionista. Tais métodos, como por exemplo, o sistema colonial, baseiam-se, em parte, na violência mais brutal.”
“[…] Com o desenvolvimento da produção capitalista durante o período manufatureiro, a opinião pública europeia perdeu o que ainda lhe restava de pudor e consciência. As nações se jactavam cinicamente de toda a infâmia que constituísse um meio para a acumulação de capital.”
“[…] Enquanto introduzia a escravidão infantil na Inglaterra, a indústria do algodão dava, ao mesmo tempo, o impulso para a transformação da economia escravista dos Estados Unidos, antes mais ou menos patriarcal, num sistema comercial de exploração. Em geral, a escravidão disfarçada dos assalariados na Europa necessitava, como pedestal, da escravidão sans phrase do Novo Mundo.”
Karl Marx, O capital: crítica da economia política, Livro I: o processo de produção do capital (Boitempo, 2013, p. 820, p. 824, p. 829)
Outro aspecto da crítica marxiana que, por muito tempo, passou despercebida por alguns marxistas é que Marx desenvolve uma reflexão (nunca aprofundada devidamente, é verdade) na qual afirma que as formas de dominação burguesas apresentam sutilezas na metrópole, mas desfilam nuas com toda sua crueldade nas colônias.14 Ou seja, Marx discorre sobre como a realidade colonial é o capitalismo em seu estado de máxima barbárie, uma espécie de verdade do capital; essa reflexão, posteriormente, também foi desenvolvida e aprofundada por Lênin:
“A profunda hipocrisia, a intrínseca barbárie da civilização burguesa se apresentam diante de nós sem disfarces, assim que das grandes metrópoles, onde elas assume formas respeitáveis, voltamos os olhos para as colônias, onde passeiam desnudas”.
Karl Marx, “Os resultados eventuais da dominação britânica na Índia” [1853].
E, por último, ao analisar a comuna rural russa (mir), Marx e Engels, ainda que por caminhos um pouco diferentes, consideraram que ela poderia ser a base da construção do socialismo russo, negando uma universalidade agressiva e colonizante a partir das formas sociais europeias. Ao fazê-lo, os fundadores do materialismo histórico colocam uma questão central para os movimentos revolucionários da periferia do capitalismo: mesmo com toda destruição causada pelo colonialismo imperialista, sobrevivem formas sociais e práticas culturais pré-colonização que carregam tradições comunitárias e igualitárias que podem ser a base da construção do socialismo com características nacionais e próprias de cada povo15.
Anos depois, José Carlos Mariátegui e Amílcar Cabral, por exemplo, adensaram essa reflexão a partir de sua realidade nacional. Todavia, cabe ainda destacar que tanto Marx e Engels, como Mariátegui, Cabral, Che Guevara e tantos outros, mesmo reconhecendo e defendendo um caminho múltiplo de desenvolvimento socioeconômico para o socialismo, apropriando e valorizando as históricas tradições nacional-populares dos explorados, não negaram a necessidade de desenvolver as forças produtivas na construção da sociedade pós-capitalista. Relações sociais igualitárias, na miséria, não formam o socialismo: apenas caricaturas e rudimentos dele.
Por estes quatro aspectos, afirmamos que o marxismo, antes de qualquer “adaptação nacional” nos países dependentes, coloniais e semicoloniais da África, Ásia ou América Latina e Caribe, já estava inclinado para transformar-se numa indispensável arma na luta antirracista e anticolonial. Considerar o marxismo como essencialmente eurocêntrico é um erro que percorre dois caminhos. Primeiro, apegar-se a algum trecho ou texto de Marx e Engels – e como falamos acima, alguns deles, realmente, são terríveis, como os comentários de Engels sobre o México ou o pequeno panfleto de Marx sobre Simon Bolívar –, ignorando o conjunto de sua obra e deixando de fazer uma análise da globalidade de sua produção teórica. Segundo, tomar como premissa da crítica uma análise idealizada das formas sociais pré-colonização numa tentativa infantilizada de retornos a sociedades já destruídas (como o misticismo em torno de uma África pré-colonização, algo de muito sucesso no movimento negro brasileiro).
A partir dessa perspectiva de retorno idealizado, caricata o suficiente ao ponto de idolatrar monarquias de bases socioeconômicas feudais, Marx e Engels seriam por essência eurocêntricos, já que partem da realidade europeia, seu objeto de análise, dado ser nesse continente o centro dinâmico do capitalismo mundial. Ora, é evidente que Marx e Engels são europeus e, mesmo produzindo a contrapelo das tendências ideológicas dominantes de sua época, não escapam totalmente às determinações histórico-culturais e subjetivas de seu tempo.
A grande questão, porém, é que a obra marxiana-engelsiana é, acima de tudo, uma crítica da economia política, uma análise do modo de produção capitalista em suas formas mais elementares com vistas à superação revolucionária dessa sociedade. Nesse sentido, usando uma linguagem hegeliana, podemos dizer que o capitalismo é um universal que se realiza na particularidade de cada país/região. Ou seja, enquanto existir capitalismo, a crítica da economia política de Marx e Engels e, portanto, o materialismo histórico serão a filosofia insuperável do nosso tempo. Isso, contudo, não significa que essa crítica seja um universal-abstrato coagulado de determinações mais concretas. O universal se realiza no particular. A grande tarefa do marxista na periferia do capitalismo é analisar essa totalidade desde o ponto de vista da sua realidade nacional.
Nada disso significa, contudo, que não tenha existido e que não existam até hoje marxistas eurocêntricos. Eles existem. Assim como existem marxistas estruturalistas, analíticos, pós-modernos, neopositivistas, existencialistas e assim por diante. Nenhuma dessas leituras são derivados necessários da obra marxiana-engelesiana, mas apropriações parciais de aspectos tópicos do materialismo histórico. Nesse sentido, o fato de haver marxistas eurocêntricos e uma larga tradição de eurocentrismo no marxismo (assim como uma tradição anticolonial e antirracista, por nós trabalhada em nosso curso online) não autoriza ninguém com dois dedos de honestidade intelectual a descartar o marxismo como algo que só teria validade para Europa.
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