Deolinda Rodrigues : Diarista e poetisa da geração da guerrilha
Ainda quando era estudante do Liceu Salvador Correia, em Luanda, Deolinda Rodrigues Francisco de Almeida já se empenhava na luta política anti-colonial na clandestinidade, ocupando-se da tradução e interpretação de matérias sobre Angola publicadas em jornais estrangeiros e em livros como “The African Awakening”, de Basil Davidson, jornalista e escritor inglês. Deolinda Rodrigues registou num diário as vicissitudes, inquietações e aspirações pessoais e colectivas no contexto difícil da luta clandestina e da guerrilha anti-colonial
22/11/2020 ÚLTIMA ATUALIZAÇÃO 18H32
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Os documentos traduzidos por Deolinda Rodrigues, em que se denunciava a precariedade das condições sociais, a repressão colonial, o estatuto de indígena - que rebaixava os nativos ao nível do gado animal de carga e de trabalhos -, o exílio e a morte, assim como se proclamava o direito a autodeterminação dos angolanos, eram depois enviados para a ONU e aos países africanos recentemente independentes.
No chão político da clandestinidade, Deolinda Rodrigues usava o pseudónimo "Kama Angola” para não ser alvo fácil de abater pela polícia política colonial (Pide). Em conformidade com o "Dicionário Kimbundu-Português”, de Assis Júnior, a palavra "kama” quer dizer em português "coisinha”. Assim "Kama Angola” é o mesmo que dizer, literalmente, "Coisinha de Angola” ou algo pertença de Angola. Na vida pública, além dos estudos, a diarista lidava com "O Estandarte”. No n.º 247/8, de 1957 desta publicação dá-se nota pública de Deolinda Rodrigues "ser a primeira menina admitida no corpo directivo como secretária de redacção”. Durante o tempo naquele jornal, Deolinda publicou novelas e poemas, a saber: "Caxicane” (1956), "Luanda – Já não és a Luanda de então” (1956) e "Estrela de Belém” (1957), só para citar esses.
Essa intelectual e nacionalista angolana, única poetisa-militante a produzir literatura diarística, entra no cânone da Literatura de Guerrilha germinada na década de 60 com quatro poemas, incorporados no "Diário”, através do ensaísta e antologista angolano Mário Pinto de Andrade (1980) em "Antologia Temática de Poesia Africana: O Canto Armado II” e do ensaísta e historiador da literatura angolana Carlos Ervedosa (1985) em "Roteiro da Literatura Angolana”. Na guerrilha, Deolinda Rodrigues respondia pelo antropónimo em kimbundu "Langidila”, que em português é a expressão que quer dizer "Sê vigilante” ou "Toma cuidado”, coincidente com o eu sujeito racional e introspectivo construído na narrativa literária fragmentária.
Ao examinar a escrita diarística de Deolinda Rodrigues, o discurso anti-colonial emerge como um autêntico libelo acusatório e ressonante, que dá corpo ao espírito da literatura que começara em Angola, com destaque para os problemas sociais claramente expressos. Segundo Riaúzova (1986) em "Dez Anos de Literatura Angolana”, é feita "a denúncia do colonialismo e das suas consequências sociais e psicológicas, que mais tarde, durante a primeira guerra de libertação nacional, evolui para a literatura ‘política’, engajada”. Engajamento entendido, na esteira de Forest (1991) em "Termos Fundamentais da Cultura Geral”, como o "desejo de um escritor ou de um artista actuar, através da sua obra, nos conflitos políticos do seu tempo”.
No "Diário” o sujeito armado de "punhais” assume a função contestatária e denuncia a ideologia colonial de pendor esclavagista a que os nativos estavam submetidos, com os inúmeros actos de injustiça à semelhança do apartheid: "gente surrada até sangrar por todo o corpo; mulheres rusgadas para dormir com o chefe (uma em cada noite), enquanto a mulher do Chefe está no putu. Roubalheira no peso e pagamento do café: quem refila é morto à pancada no posto. Na igreja, há uma missa para os pretos e, depois, outra para os brancos. Não se misturam”. Em frente da linha contestatária o sujeito resiste ainda contra toda a tendência de marginalizar a mulher e rejeita a polifonia de eus mal encaminhados ao movimento vocacionado para levar a libertação e a independência a Angola. A escrita de Deolinda Rodrigues capta a crueldade colonial e o processo de organização para a destruição do colonialismo durante a qual o sujeito revela a sua intimidade.
Na hora do adeus a Angola para o Brasil, para frequentar a formação superior em Sociologia, a diarista retrata aquele momento com profundo entusiasmo, frisando que jamais o seu espírito viria a desligar-se da Mamã ou Mãe Terra, Angola. Do primeiro registo sob a data "9 de Setembro de 1959” até a entrada sob a data "3 de Fevereiro de 1959” a diarista traz-nos o retrato de Angola oprimida e a necessidade de se envolver num processo de luta de libertação para a derrocada do tronco esclavagista. Concordamos com Baum (1989) no seu livro "A Liberdade”, quando diz que "o desejo de liberdade nasce da experiência da opressão, isto é, da sensação de não se poder deixar de fazer” ou construir a liberdade.
Numa escrita em que se pode despontar o labor oficinal literário, a autognose e a identidade, Deolinda Rodrigues faz recurso à criatividade onomatopeica através da assonância para veicular a sensação do grito e gemido de dor nos espaços assombrados encobertos nos "as”: "Esta é a Luanda da chicotada do branco / nas costas nuas do preto / que cava a terra sob um sol de Março / Esta é a Angola do contratado / E é esta a Angola que deixei hoje” (…).
Os versos evocam o som do bater agressivo e violento do chicote sobre os colonizados "amarrados ao tronco esclavagista / dos torturados no cárcere” (Neto, Sagrada Esperança, 2016), substituindo o tocar do batuque nas noites de luar. A predominância da anáfora e reiteração lexical do topónimo Angola e o dêitico demonstrativo "esta” reforça a chamada de atenção para o espaço assombrado pelo tronco esclavagista, mas também para o espaço que inspira a luta para a liberdade. Para o efeito, alude-se ao inconformismo generalizado no solo da clandestinidade, único espaço de "liberdade política” em Angola sobre o qual o engenho político se desenvolve e aguça o espírito de revolta diluído no ânimo insuflado de esperança e tenacidade. Era o rastilho em chama que lançava o eu sujeito a olhar o futuro com convicção por uma Angola transformada por uma independência: "Mas temos de transformá-la: não sei como nem com que forças, mas este mal não pode durar sempre”. Esse olhar o futuro com convicção mantém-se até agora, pois somos instados amiúde a transformar Angola para uma "independência real”, segundo Agostinho Neto (2016), em "Sagrada Esperança”.
O que é um diário?
A palavra "diário” apresenta-se nas seguintes formas noutras línguas: em alemão "tagebuch”, em inglês "diary”, em espanhol e em italiano "diário”. Em grego se dizia "efemérides” (de hemera, o dia), em latim "diarium” (de dies, o dia), em francês diz-se "journal intime”, diário íntimo. Philippe Lejeune (2008), em "O Pacto Autobiográfico”, explica que em francês especifica-se "íntimo” para evitar a confusão com a imprensa quotidiana. A intimidade só entrou de facto mais tarde na história do diário. Os diários obedecem às características consideradas como regra ou mesmo cláusula. A partir da primeira entrada o relato do "Diário” de Deolinda Rodrigues respeita a datação, característica que converge com inúmeros diários conhecidos mundialmente, a saber: "Diário” (2 Volumes), de Miguel Torga, "Diário de Anne Frank”, "O Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada”, de Carolina Maria de Jesus, só para citar estes.
Os narratologistas Reis/Lopes (2011) em "Dicionário de Narratologia” apresentam as características básicas do diário: "fragmentação diegética imposta pelo ritmo em princípio quotidiano dos actos narrativos que compõem o diário; tendência para o confessionalismo, assumido de forma mais ou menos aberta; peculiar posicionamento e configuração do destinatário”.
De acordo com Maurice Blanchot (2005), em "O livro por vir”, e outros estudiosos, no diário podem funcionar vários mecanismos da escrita, como a ficção narrativa e o lirismo, tudo é possível, assim como todos os níveis de linguagem e de estilo. No observar de Lejeune, os diários publicados permitem a sinalização do tempo em formato de calendarização, o que é considerado um elemento indispensável: "um diário sem data, a rigor, não passa de uma simples caderneta”, pois "a datação pode ser mais ou menos precisa ou espaçada, mas é capital”, distinguindo-o dos outros subgéneros da literatura autobiográfica.
Blanchot (2005) enumera pormenorizadamente o que pode caber na escrita diarística, quando diz que "o diário íntimo aparentemente tão desprendido das formas, tão dócil aos movimentos da vida e capaz de todas as liberdades, uma vez que pensamentos, sonhos, ficções, comentários de si, acontecimentos importantes ou insignificantes, tudo aí cabe, conforme a ordem ou a desordem que se queira”, tudo isso deve obedecer a datação, porque, no dizer do mesmo autor, o diário "está vinculado a uma cláusula que embora pareça leve, é temível: deve respeitar o calendário. Esse o pacto que o diário assina. O calendário é o seu demónio, inspirador, compositor, provocador e vigilante”.
Essas características canónicas apresentam-se em mancha gráfica no "Diário” de Deolinda Rodrigues, escrito de 1956 a 1967, com alguns dias e meses intercalados, perfazendo um ano sem relatos. A data, por exemplo, "17 de Setembro de 1956”, escreve Deolinda Rodrigues seguida da "entrada” ou "registo”, isto é, o que está escrito sob uma mesma data: assim "17 de Setembro de 1956 – O Mino trouxe um memorandum para traduzir e dactilografar. Então é sinal de que fui aceite no Movimento”.
O diário é um discurso narrativo intercalado escrito retrospectivamente, com um curto espectro de tempo entre o acontecido e o registo em que um eu, com vida extratextual, comprovada ou não, anota periodicamente, com o amparo das datas, um conteúdo muito variável, na definição de Reis/Lopes. O termo diário remete a uma actividade da escrita quotidiana: blocos de conteúdos datados, no dizer de Lejeune.
Nesta mesma sequência conceptual segue Aguiar e Silva citado por Brauer-Figueiredo/Karin Hopfe (2002), em "Metamorfoses do Eu: O Diário e outros Géneros Autobiográficos na Literatura Portuguesa do Século XX”, quando descreve o diário como lugar em que "um autor regista e analisa, dia a dia, e durante uma longa extensão de tempo, ocorrências da sua vida ou acontecimentos de que teve conhecimento, problemas e aspectos da sua intimidade e da sua consciência, reflexões e sonhos”.
No recomeçar de cada dia o "eu revela-se disperso, em resultado do carácter fragmentário da escrita diarística”, nota Clara Rocha. Confrontado com outros diários, o exame permitiu verificar que os traços característicos do texto diarístico de Deolinda Rodrigues enquadram-se no protótipo universal da literatura autobiográfica no subgénero diário. Ademais, a poiesis e a ficção decorrem. Assim não admitimos ler o Diário híbrido numa proposta teórica como forma de um discurso científico e histórico em que se anula a natureza da sua ficção. Trazemos aqui a posição de Vergílio Ferreira, autor do diário "Conta-Corrente”, segundo a qual "(…) a maioria dos diaristas ‘inventam’ mesmo os dados de que partem. Assim, a ‘criação’ começa logo aí. Mas se não começa, prolonga-se no tratamento que lhes é dado. E daí a ‘ficção’. E o leitor deve ater-se à questão de ‘o que está em causa não é saber se os factos aconteceram, mas o modo como o autor os fez acontecer’”. A escrita de Deolinda Rodrigues evolui justamente até a afirmação convencida de Vergílio Ferreira.
Literariedade e ficção
A literariedade do "Diário” de Deolinda Rodrigues tem à frente o eu, narrador autodiegético, personagem e protagonista, que assume uma narrativa factual, em que a poiesis ou a criatividade decorre, pois o "eu é um outro”, na afirmação de Lejeune (2008). Tal e qual Roland Barthes (1981) em "O Grão da Voz” afirma: "eu é verdadeiramente o pronome do imaginário, do eu”. Contudo, não difere da "autoficção”, termo e conceito cunhado pelo romancista, crítico e teórico da literatura Serge Doubrovsky (1977) em "Fils”.
Não distante disso, em "Le Journal Intime”, Didier (2002) afirma que por mais apressado que seja para tomar notas, o diarista não descreve os acontecimentos de sua vida no momento em que os vive, mas à noite, no dia seguinte. Essa prática justifica então a retrospecção de fraco alcance, o afastamento entre um eu objecto e um eu sujeito sobre os quais Luís Kandjimbo (2010), em "Ensaio Para Inversão do Olhar – Da Literatura Angolana à Literatura Epistolar”, ajuda-nos a perceber essa prática de a diarista descrever os eventos em tempo diferido quando afirma que o diário "é um testemunho da realidade observada por um eu objecto e essa realidade é relatada de modo diferido por um outro eu sujeito”.
Carlos Teixeira (2008) em "‘Escrever-se’ e/ou ‘Outrar-se’ – Escrita e Relação em ‘Páginas do Diário Íntimo’ de José Régio” (disponível em https://core.ac.uk) converge na posição precedente quando diz que "o eu escrevente, que à distância dá testemunho do vivido, não é o mesmo que aquele outro eu que efectivamente experienciou o(s) acontecimento(s) ocorridos num passado mais ou menos longínquo”.
Se o registo não decorrer por um distanciamento do tempo, então a iminência do lírico redunda. Reis e Lopes (2011), apegando-se à experiência de Staiger (1966) em "Conceptos Fundamentales de Poética” nota como o diário se faz eminentemente lírico: "no diário o homem dá testemunho da hora acabada de transcorrer. (...). Quem escreve um diário liberta-se de cada dia na medida em que adopta uma distância e dá testemunho do já decorrido. Se não o consegue, fala de maneira imediata e então o seu diário resulta lírico”.
Paz e Moniz (2004), em "Dicionário Breve de Termos Literários”, posicionam-se mais além do eu quando fazem notar que "o relato do diário na primeira pessoa e o filtro da visão subjectiva” instauram "as principais marcas de literariedade” sem colocar à margem o "discurso variado, que combina a narração, a descrição, o monólogo (eventualmente o diálogo) e a efusão lírica”. Esses mecanismos da escrita são possíveis de serem assinalados no "Diário” rodrigueano, onde se pode constatar a presença de um eu cindido, descrição dos espaços e relevância introspectiva que dá lugar ao "presente ficcional” a partir do espaço de intimidade peculiar da diarista em que "ela se debruça sobre si mesma” no templo da introspecção e confissão. Segue-se ainda a caracterização psicológica das personagens em detrimento da física, diálogo, posição demiúrgica do eu narrador, dentre outros.
A cisão do eu narrador ao desdobrar-se para que tenha uma instância interlocutora do narrador, ou seja, um tu ficcional implícito e outras vezes explícito no momento de ensimesmamento, é um dos mecanismos de que se vale a diarista, como se segue: "Mas também é necessário que outros aguentem o trabalho. Se mais tarde, depois da volta doutros quadros, houver oportunidade e a minha vez chegar para realizar o meu sonho de servir ANGOLA LIVRE como médica, é com alegria que irei então continuar os meus estudos. Mas até lá fico a prestar trabalho onde a luta EXIGIR. Bem, deixa-me ir ajudar na louça e no jantar” (Rodrigues, pp. 80-82).
A partir deste excerto acontece a interface, uma das características da literatura ficcional, por o eu narrador dirigir-se ao interlocutor privilegiado que não existe, fingindo estar a conversar com alguém. Não é visível a presença do interlocutor, que entretém o eu narrado ao alongar a conversa e, para colocar uma pausa no diálogo, tem que pedir. Assim: "Bem, deixa-me ir ajudar na louça e no jantar”.
Nessa dialéctica, permite-se assinalar a presença implícita do dêitico tu resultante desse desdobramento do eu criando um dialogismo: do eu que fala e do eu (tu) que escuta, isto é, a cisão do ego. No "Diário” de Deolinda, o eu narrador chega a assumir uma posição demiúrgica por saber o que se passa na mente das personagens: "As pessoas adultas que vêm visitar-me no quarto só olham para a panela e o cesto: procuram comida e, coitados, sonham com petiscos. Não lhes passa pela cabeça o facto de haver moambada e feijão na panela, bananas e kikwanga no cesto”.
"Mamã” como instância interlocutoraA instância interlocutora explícita do eu narrador chama-se Mamã, destinatária imaginária criada como uma protectora capaz de ouvir as deprecações confessionais e remir toda a culpa do eu sujeito protagonista, para que o ajude a vigiar-se, a censurar-se, a advertir-se, a inspirar-se e a ser mais contido, sobretudo, a manter-se no caminho dos "punhais” em direcção à "liberdade”. Vejamos a confissão: "A culpa foi minha, pois não devia ter respondido a nenhuma das provocações dele. Esta falta de controlo no papo é que vai dar cabo da minha vida qualquer dia. Preciso manter-me serena e evitar a todo o preço falar sem que seja estritamente necessário. (…)
Mamã e Papá, perdoem-me por esta desonra. Tenho de melhorar” (Rodrigues, pp. 78-79, 82, 84). Podemos observar a "teimosia” exprimida pelo sujeito a partir do seu pensamento mais íntimo. Confronta-se com as suas próprias falhas, admite o erro e pretende que o seu interlocutor Mamã purifique-o da culpa e promete-lhe ser um eu com verbo mais introvertido. O exame de consciência ou estado de espírito exposto em tom confessional é tradicionalmente dirigido à Mamã, ente numinoso capaz de evitar mortes e outras fatalidades indesejáveis junto das suas "4 forças” (Rodrigues, pp. 192-193).
São desses momentos de confissão e não só que inferimos o "Diário” de Deolinda Rodrigues situar-se entre o diário íntimo e o externo.
Entre eus fragmentados, que terão construído uma série de valores universais reconhecidos aqui como modelos sócio-culturais e patrióticos requeridos à sociedade hodierna, destaca-se o determinismo do eu não descentrado no tempo histórico relatado no "Diário”. Entende-se por não descentramento o exercício cultural que consiste em não deixar de ver as coisas a partir de um elemento central, que para o eu-Deolinda não é mais do que a liberdade e independência dos angolanos.
Mário de Andrade (1980) destaca no prefácio da "Antologia temática de poesia africana: Noite Grávida de Punhais” a constante escrita poética em que a Mãe Terra predomina: "Dois pontos permanentes de apoio confundidos no mesmo significante simbólico: a mãe e a terra. O canto da mãe desemboca em sonhos, esperança e certeza (…)”. Os poetas inspirados pela musa do canto poético da liberdade elevam a afirmação cultural africana ao recorrerem aos símbolos culturais bantu africano encoleirados pela ideologia colonial, pela sua inserção nos poemas e narrativas literárias. Caracterizam a fidelidade às origens como forma de rejeição do processo da assimilação, como nos dá a entender Mário de Andrade (1980): "os poetas detectam as suas matrizes culturais. A rejeição do assimilacionismo veiculado pela ideologia dominante acompanha-se da busca de raízes africanas. Os valores do património cultural do mundo negro integram a musicalidade dos verbos”.
Percebe-se, finalmente, que a destinatária Mamã representa na cosmogonia angolana a terra e toda a sua beleza e ancestralidade. Por extensão, toda a Mãe Negra, a qual deu à luz aos angolanos e todos os africanos. Essa destinatária imaginária do eu narrador estende-se à voz poética cuja mensagem está encerrada no poema "À Mamã” (1967), frequentemente mencionada, símbolo do continente africano, de Angola e de todas as áfricas do mundo.
A maneira como o eu narrador relata os factos instaura a estética do exílio simbólico resultante da meditação: "Mas entre afastar-me da luta para estudar no estrangeiro e ficar cá devotada 24 horas por dia à luta, ao mesmo tempo que aproveito as ‘horas vagas’ que milagrosamente conseguir, escolho ficar cá empenhada directamente na luta. E não é por ninguém que faço isto. É pela minha família, é por Angola simplesmente que tomo essa decisão” (Rodrigues, p. 81).
Os mecanismos que marcam a literariedade, a auto-ficção, como recorte da imagem de si ou o eu em mutação, relata o real para a qual algumas impressões subjectivas do sujeito diluem-se no imaginário. As imbricações desses mecanismos nos acontecimentos factuais introduzem o "Diário” híbrido à instituição do ensino e da crítica literária, numa altura em que o mercado literário angolano continua a registar a publicação e circulação crescente de obras de diversas formas da literatura autobiográfica propriamente dita, embora tímida para o diário. Os diários foram durante muito tempo marginalizados pela única preocupação com a análise e interpretação dos géneros nobres: poema, romance e conto, segundo observação de Silviano Santiago (1988) na "Revista de Literatura Brasileira”, n.º 6 ("O eixo e a roda: memorialismo e autobiografia”).
O "Diário” de Deolinda Rodrigues estrutura-se em três partes distintas, sem a desfocagem do processo da luta nacionalista para a libertação e independência de Angola. No primeiro momento, a diarista revela o seu envolvimento na política da clandestinidade, atitude subversiva aos olhos das autoridades da gestapo (PIDE), que terá sido ocultamente instalada em Luanda antes de 1957 para desmantelar os então movimentos e partidos políticos. No segundo, a diarista frequenta treinos militares para integrar o Esquadrão Kamy, que em 1967 efectuou a marcha epopeica no maquis do solo angolano em direcção a 1.ª Região Político-Militar, concretamente Nambuangongo, Bengo. No regresso é capturada com mais quatro mulheres guerrilheiras da luta anti-colonial (Engrácia dos Santos, Irene Cohen, Lucrécia Paim e Teresa Afonso). O terceiro consiste na transição do eu narrador à voz poética, que se solta das celas de prisão de Kakokol, em Kamuna, sanzala fronteiriça no território do Congo-Léopoldville, nessa altura baluarte da UPA. Um tempo depois, a diarista é transferida para o campo ou base de Kinkuzu. Os poemas terão sido escritos nas celas daquelas prisões.
*Marcelo Sebastião é investigador do Departamento de Investigação do Memorial Dr. António Agostinho Neto e docente universitário
No chão político da clandestinidade, Deolinda Rodrigues usava o pseudónimo "Kama Angola” para não ser alvo fácil de abater pela polícia política colonial (Pide). Em conformidade com o "Dicionário Kimbundu-Português”, de Assis Júnior, a palavra "kama” quer dizer em português "coisinha”. Assim "Kama Angola” é o mesmo que dizer, literalmente, "Coisinha de Angola” ou algo pertença de Angola. Na vida pública, além dos estudos, a diarista lidava com "O Estandarte”. No n.º 247/8, de 1957 desta publicação dá-se nota pública de Deolinda Rodrigues "ser a primeira menina admitida no corpo directivo como secretária de redacção”. Durante o tempo naquele jornal, Deolinda publicou novelas e poemas, a saber: "Caxicane” (1956), "Luanda – Já não és a Luanda de então” (1956) e "Estrela de Belém” (1957), só para citar esses.
Essa intelectual e nacionalista angolana, única poetisa-militante a produzir literatura diarística, entra no cânone da Literatura de Guerrilha germinada na década de 60 com quatro poemas, incorporados no "Diário”, através do ensaísta e antologista angolano Mário Pinto de Andrade (1980) em "Antologia Temática de Poesia Africana: O Canto Armado II” e do ensaísta e historiador da literatura angolana Carlos Ervedosa (1985) em "Roteiro da Literatura Angolana”. Na guerrilha, Deolinda Rodrigues respondia pelo antropónimo em kimbundu "Langidila”, que em português é a expressão que quer dizer "Sê vigilante” ou "Toma cuidado”, coincidente com o eu sujeito racional e introspectivo construído na narrativa literária fragmentária.
Ao examinar a escrita diarística de Deolinda Rodrigues, o discurso anti-colonial emerge como um autêntico libelo acusatório e ressonante, que dá corpo ao espírito da literatura que começara em Angola, com destaque para os problemas sociais claramente expressos. Segundo Riaúzova (1986) em "Dez Anos de Literatura Angolana”, é feita "a denúncia do colonialismo e das suas consequências sociais e psicológicas, que mais tarde, durante a primeira guerra de libertação nacional, evolui para a literatura ‘política’, engajada”. Engajamento entendido, na esteira de Forest (1991) em "Termos Fundamentais da Cultura Geral”, como o "desejo de um escritor ou de um artista actuar, através da sua obra, nos conflitos políticos do seu tempo”.
No "Diário” o sujeito armado de "punhais” assume a função contestatária e denuncia a ideologia colonial de pendor esclavagista a que os nativos estavam submetidos, com os inúmeros actos de injustiça à semelhança do apartheid: "gente surrada até sangrar por todo o corpo; mulheres rusgadas para dormir com o chefe (uma em cada noite), enquanto a mulher do Chefe está no putu. Roubalheira no peso e pagamento do café: quem refila é morto à pancada no posto. Na igreja, há uma missa para os pretos e, depois, outra para os brancos. Não se misturam”. Em frente da linha contestatária o sujeito resiste ainda contra toda a tendência de marginalizar a mulher e rejeita a polifonia de eus mal encaminhados ao movimento vocacionado para levar a libertação e a independência a Angola. A escrita de Deolinda Rodrigues capta a crueldade colonial e o processo de organização para a destruição do colonialismo durante a qual o sujeito revela a sua intimidade.
Na hora do adeus a Angola para o Brasil, para frequentar a formação superior em Sociologia, a diarista retrata aquele momento com profundo entusiasmo, frisando que jamais o seu espírito viria a desligar-se da Mamã ou Mãe Terra, Angola. Do primeiro registo sob a data "9 de Setembro de 1959” até a entrada sob a data "3 de Fevereiro de 1959” a diarista traz-nos o retrato de Angola oprimida e a necessidade de se envolver num processo de luta de libertação para a derrocada do tronco esclavagista. Concordamos com Baum (1989) no seu livro "A Liberdade”, quando diz que "o desejo de liberdade nasce da experiência da opressão, isto é, da sensação de não se poder deixar de fazer” ou construir a liberdade.
Numa escrita em que se pode despontar o labor oficinal literário, a autognose e a identidade, Deolinda Rodrigues faz recurso à criatividade onomatopeica através da assonância para veicular a sensação do grito e gemido de dor nos espaços assombrados encobertos nos "as”: "Esta é a Luanda da chicotada do branco / nas costas nuas do preto / que cava a terra sob um sol de Março / Esta é a Angola do contratado / E é esta a Angola que deixei hoje” (…).
Os versos evocam o som do bater agressivo e violento do chicote sobre os colonizados "amarrados ao tronco esclavagista / dos torturados no cárcere” (Neto, Sagrada Esperança, 2016), substituindo o tocar do batuque nas noites de luar. A predominância da anáfora e reiteração lexical do topónimo Angola e o dêitico demonstrativo "esta” reforça a chamada de atenção para o espaço assombrado pelo tronco esclavagista, mas também para o espaço que inspira a luta para a liberdade. Para o efeito, alude-se ao inconformismo generalizado no solo da clandestinidade, único espaço de "liberdade política” em Angola sobre o qual o engenho político se desenvolve e aguça o espírito de revolta diluído no ânimo insuflado de esperança e tenacidade. Era o rastilho em chama que lançava o eu sujeito a olhar o futuro com convicção por uma Angola transformada por uma independência: "Mas temos de transformá-la: não sei como nem com que forças, mas este mal não pode durar sempre”. Esse olhar o futuro com convicção mantém-se até agora, pois somos instados amiúde a transformar Angola para uma "independência real”, segundo Agostinho Neto (2016), em "Sagrada Esperança”.
O que é um diário?
A palavra "diário” apresenta-se nas seguintes formas noutras línguas: em alemão "tagebuch”, em inglês "diary”, em espanhol e em italiano "diário”. Em grego se dizia "efemérides” (de hemera, o dia), em latim "diarium” (de dies, o dia), em francês diz-se "journal intime”, diário íntimo. Philippe Lejeune (2008), em "O Pacto Autobiográfico”, explica que em francês especifica-se "íntimo” para evitar a confusão com a imprensa quotidiana. A intimidade só entrou de facto mais tarde na história do diário. Os diários obedecem às características consideradas como regra ou mesmo cláusula. A partir da primeira entrada o relato do "Diário” de Deolinda Rodrigues respeita a datação, característica que converge com inúmeros diários conhecidos mundialmente, a saber: "Diário” (2 Volumes), de Miguel Torga, "Diário de Anne Frank”, "O Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada”, de Carolina Maria de Jesus, só para citar estes.
Os narratologistas Reis/Lopes (2011) em "Dicionário de Narratologia” apresentam as características básicas do diário: "fragmentação diegética imposta pelo ritmo em princípio quotidiano dos actos narrativos que compõem o diário; tendência para o confessionalismo, assumido de forma mais ou menos aberta; peculiar posicionamento e configuração do destinatário”.
De acordo com Maurice Blanchot (2005), em "O livro por vir”, e outros estudiosos, no diário podem funcionar vários mecanismos da escrita, como a ficção narrativa e o lirismo, tudo é possível, assim como todos os níveis de linguagem e de estilo. No observar de Lejeune, os diários publicados permitem a sinalização do tempo em formato de calendarização, o que é considerado um elemento indispensável: "um diário sem data, a rigor, não passa de uma simples caderneta”, pois "a datação pode ser mais ou menos precisa ou espaçada, mas é capital”, distinguindo-o dos outros subgéneros da literatura autobiográfica.
Blanchot (2005) enumera pormenorizadamente o que pode caber na escrita diarística, quando diz que "o diário íntimo aparentemente tão desprendido das formas, tão dócil aos movimentos da vida e capaz de todas as liberdades, uma vez que pensamentos, sonhos, ficções, comentários de si, acontecimentos importantes ou insignificantes, tudo aí cabe, conforme a ordem ou a desordem que se queira”, tudo isso deve obedecer a datação, porque, no dizer do mesmo autor, o diário "está vinculado a uma cláusula que embora pareça leve, é temível: deve respeitar o calendário. Esse o pacto que o diário assina. O calendário é o seu demónio, inspirador, compositor, provocador e vigilante”.
Essas características canónicas apresentam-se em mancha gráfica no "Diário” de Deolinda Rodrigues, escrito de 1956 a 1967, com alguns dias e meses intercalados, perfazendo um ano sem relatos. A data, por exemplo, "17 de Setembro de 1956”, escreve Deolinda Rodrigues seguida da "entrada” ou "registo”, isto é, o que está escrito sob uma mesma data: assim "17 de Setembro de 1956 – O Mino trouxe um memorandum para traduzir e dactilografar. Então é sinal de que fui aceite no Movimento”.
O diário é um discurso narrativo intercalado escrito retrospectivamente, com um curto espectro de tempo entre o acontecido e o registo em que um eu, com vida extratextual, comprovada ou não, anota periodicamente, com o amparo das datas, um conteúdo muito variável, na definição de Reis/Lopes. O termo diário remete a uma actividade da escrita quotidiana: blocos de conteúdos datados, no dizer de Lejeune.
Nesta mesma sequência conceptual segue Aguiar e Silva citado por Brauer-Figueiredo/Karin Hopfe (2002), em "Metamorfoses do Eu: O Diário e outros Géneros Autobiográficos na Literatura Portuguesa do Século XX”, quando descreve o diário como lugar em que "um autor regista e analisa, dia a dia, e durante uma longa extensão de tempo, ocorrências da sua vida ou acontecimentos de que teve conhecimento, problemas e aspectos da sua intimidade e da sua consciência, reflexões e sonhos”.
No recomeçar de cada dia o "eu revela-se disperso, em resultado do carácter fragmentário da escrita diarística”, nota Clara Rocha. Confrontado com outros diários, o exame permitiu verificar que os traços característicos do texto diarístico de Deolinda Rodrigues enquadram-se no protótipo universal da literatura autobiográfica no subgénero diário. Ademais, a poiesis e a ficção decorrem. Assim não admitimos ler o Diário híbrido numa proposta teórica como forma de um discurso científico e histórico em que se anula a natureza da sua ficção. Trazemos aqui a posição de Vergílio Ferreira, autor do diário "Conta-Corrente”, segundo a qual "(…) a maioria dos diaristas ‘inventam’ mesmo os dados de que partem. Assim, a ‘criação’ começa logo aí. Mas se não começa, prolonga-se no tratamento que lhes é dado. E daí a ‘ficção’. E o leitor deve ater-se à questão de ‘o que está em causa não é saber se os factos aconteceram, mas o modo como o autor os fez acontecer’”. A escrita de Deolinda Rodrigues evolui justamente até a afirmação convencida de Vergílio Ferreira.
Literariedade e ficção
A literariedade do "Diário” de Deolinda Rodrigues tem à frente o eu, narrador autodiegético, personagem e protagonista, que assume uma narrativa factual, em que a poiesis ou a criatividade decorre, pois o "eu é um outro”, na afirmação de Lejeune (2008). Tal e qual Roland Barthes (1981) em "O Grão da Voz” afirma: "eu é verdadeiramente o pronome do imaginário, do eu”. Contudo, não difere da "autoficção”, termo e conceito cunhado pelo romancista, crítico e teórico da literatura Serge Doubrovsky (1977) em "Fils”.
Não distante disso, em "Le Journal Intime”, Didier (2002) afirma que por mais apressado que seja para tomar notas, o diarista não descreve os acontecimentos de sua vida no momento em que os vive, mas à noite, no dia seguinte. Essa prática justifica então a retrospecção de fraco alcance, o afastamento entre um eu objecto e um eu sujeito sobre os quais Luís Kandjimbo (2010), em "Ensaio Para Inversão do Olhar – Da Literatura Angolana à Literatura Epistolar”, ajuda-nos a perceber essa prática de a diarista descrever os eventos em tempo diferido quando afirma que o diário "é um testemunho da realidade observada por um eu objecto e essa realidade é relatada de modo diferido por um outro eu sujeito”.
Carlos Teixeira (2008) em "‘Escrever-se’ e/ou ‘Outrar-se’ – Escrita e Relação em ‘Páginas do Diário Íntimo’ de José Régio” (disponível em https://core.ac.uk) converge na posição precedente quando diz que "o eu escrevente, que à distância dá testemunho do vivido, não é o mesmo que aquele outro eu que efectivamente experienciou o(s) acontecimento(s) ocorridos num passado mais ou menos longínquo”.
Se o registo não decorrer por um distanciamento do tempo, então a iminência do lírico redunda. Reis e Lopes (2011), apegando-se à experiência de Staiger (1966) em "Conceptos Fundamentales de Poética” nota como o diário se faz eminentemente lírico: "no diário o homem dá testemunho da hora acabada de transcorrer. (...). Quem escreve um diário liberta-se de cada dia na medida em que adopta uma distância e dá testemunho do já decorrido. Se não o consegue, fala de maneira imediata e então o seu diário resulta lírico”.
Paz e Moniz (2004), em "Dicionário Breve de Termos Literários”, posicionam-se mais além do eu quando fazem notar que "o relato do diário na primeira pessoa e o filtro da visão subjectiva” instauram "as principais marcas de literariedade” sem colocar à margem o "discurso variado, que combina a narração, a descrição, o monólogo (eventualmente o diálogo) e a efusão lírica”. Esses mecanismos da escrita são possíveis de serem assinalados no "Diário” rodrigueano, onde se pode constatar a presença de um eu cindido, descrição dos espaços e relevância introspectiva que dá lugar ao "presente ficcional” a partir do espaço de intimidade peculiar da diarista em que "ela se debruça sobre si mesma” no templo da introspecção e confissão. Segue-se ainda a caracterização psicológica das personagens em detrimento da física, diálogo, posição demiúrgica do eu narrador, dentre outros.
A cisão do eu narrador ao desdobrar-se para que tenha uma instância interlocutora do narrador, ou seja, um tu ficcional implícito e outras vezes explícito no momento de ensimesmamento, é um dos mecanismos de que se vale a diarista, como se segue: "Mas também é necessário que outros aguentem o trabalho. Se mais tarde, depois da volta doutros quadros, houver oportunidade e a minha vez chegar para realizar o meu sonho de servir ANGOLA LIVRE como médica, é com alegria que irei então continuar os meus estudos. Mas até lá fico a prestar trabalho onde a luta EXIGIR. Bem, deixa-me ir ajudar na louça e no jantar” (Rodrigues, pp. 80-82).
A partir deste excerto acontece a interface, uma das características da literatura ficcional, por o eu narrador dirigir-se ao interlocutor privilegiado que não existe, fingindo estar a conversar com alguém. Não é visível a presença do interlocutor, que entretém o eu narrado ao alongar a conversa e, para colocar uma pausa no diálogo, tem que pedir. Assim: "Bem, deixa-me ir ajudar na louça e no jantar”.
Nessa dialéctica, permite-se assinalar a presença implícita do dêitico tu resultante desse desdobramento do eu criando um dialogismo: do eu que fala e do eu (tu) que escuta, isto é, a cisão do ego. No "Diário” de Deolinda, o eu narrador chega a assumir uma posição demiúrgica por saber o que se passa na mente das personagens: "As pessoas adultas que vêm visitar-me no quarto só olham para a panela e o cesto: procuram comida e, coitados, sonham com petiscos. Não lhes passa pela cabeça o facto de haver moambada e feijão na panela, bananas e kikwanga no cesto”.
"Mamã” como instância interlocutoraA instância interlocutora explícita do eu narrador chama-se Mamã, destinatária imaginária criada como uma protectora capaz de ouvir as deprecações confessionais e remir toda a culpa do eu sujeito protagonista, para que o ajude a vigiar-se, a censurar-se, a advertir-se, a inspirar-se e a ser mais contido, sobretudo, a manter-se no caminho dos "punhais” em direcção à "liberdade”. Vejamos a confissão: "A culpa foi minha, pois não devia ter respondido a nenhuma das provocações dele. Esta falta de controlo no papo é que vai dar cabo da minha vida qualquer dia. Preciso manter-me serena e evitar a todo o preço falar sem que seja estritamente necessário. (…)
Mamã e Papá, perdoem-me por esta desonra. Tenho de melhorar” (Rodrigues, pp. 78-79, 82, 84). Podemos observar a "teimosia” exprimida pelo sujeito a partir do seu pensamento mais íntimo. Confronta-se com as suas próprias falhas, admite o erro e pretende que o seu interlocutor Mamã purifique-o da culpa e promete-lhe ser um eu com verbo mais introvertido. O exame de consciência ou estado de espírito exposto em tom confessional é tradicionalmente dirigido à Mamã, ente numinoso capaz de evitar mortes e outras fatalidades indesejáveis junto das suas "4 forças” (Rodrigues, pp. 192-193).
São desses momentos de confissão e não só que inferimos o "Diário” de Deolinda Rodrigues situar-se entre o diário íntimo e o externo.
Entre eus fragmentados, que terão construído uma série de valores universais reconhecidos aqui como modelos sócio-culturais e patrióticos requeridos à sociedade hodierna, destaca-se o determinismo do eu não descentrado no tempo histórico relatado no "Diário”. Entende-se por não descentramento o exercício cultural que consiste em não deixar de ver as coisas a partir de um elemento central, que para o eu-Deolinda não é mais do que a liberdade e independência dos angolanos.
Mário de Andrade (1980) destaca no prefácio da "Antologia temática de poesia africana: Noite Grávida de Punhais” a constante escrita poética em que a Mãe Terra predomina: "Dois pontos permanentes de apoio confundidos no mesmo significante simbólico: a mãe e a terra. O canto da mãe desemboca em sonhos, esperança e certeza (…)”. Os poetas inspirados pela musa do canto poético da liberdade elevam a afirmação cultural africana ao recorrerem aos símbolos culturais bantu africano encoleirados pela ideologia colonial, pela sua inserção nos poemas e narrativas literárias. Caracterizam a fidelidade às origens como forma de rejeição do processo da assimilação, como nos dá a entender Mário de Andrade (1980): "os poetas detectam as suas matrizes culturais. A rejeição do assimilacionismo veiculado pela ideologia dominante acompanha-se da busca de raízes africanas. Os valores do património cultural do mundo negro integram a musicalidade dos verbos”.
Percebe-se, finalmente, que a destinatária Mamã representa na cosmogonia angolana a terra e toda a sua beleza e ancestralidade. Por extensão, toda a Mãe Negra, a qual deu à luz aos angolanos e todos os africanos. Essa destinatária imaginária do eu narrador estende-se à voz poética cuja mensagem está encerrada no poema "À Mamã” (1967), frequentemente mencionada, símbolo do continente africano, de Angola e de todas as áfricas do mundo.
A maneira como o eu narrador relata os factos instaura a estética do exílio simbólico resultante da meditação: "Mas entre afastar-me da luta para estudar no estrangeiro e ficar cá devotada 24 horas por dia à luta, ao mesmo tempo que aproveito as ‘horas vagas’ que milagrosamente conseguir, escolho ficar cá empenhada directamente na luta. E não é por ninguém que faço isto. É pela minha família, é por Angola simplesmente que tomo essa decisão” (Rodrigues, p. 81).
Os mecanismos que marcam a literariedade, a auto-ficção, como recorte da imagem de si ou o eu em mutação, relata o real para a qual algumas impressões subjectivas do sujeito diluem-se no imaginário. As imbricações desses mecanismos nos acontecimentos factuais introduzem o "Diário” híbrido à instituição do ensino e da crítica literária, numa altura em que o mercado literário angolano continua a registar a publicação e circulação crescente de obras de diversas formas da literatura autobiográfica propriamente dita, embora tímida para o diário. Os diários foram durante muito tempo marginalizados pela única preocupação com a análise e interpretação dos géneros nobres: poema, romance e conto, segundo observação de Silviano Santiago (1988) na "Revista de Literatura Brasileira”, n.º 6 ("O eixo e a roda: memorialismo e autobiografia”).
O "Diário” de Deolinda Rodrigues estrutura-se em três partes distintas, sem a desfocagem do processo da luta nacionalista para a libertação e independência de Angola. No primeiro momento, a diarista revela o seu envolvimento na política da clandestinidade, atitude subversiva aos olhos das autoridades da gestapo (PIDE), que terá sido ocultamente instalada em Luanda antes de 1957 para desmantelar os então movimentos e partidos políticos. No segundo, a diarista frequenta treinos militares para integrar o Esquadrão Kamy, que em 1967 efectuou a marcha epopeica no maquis do solo angolano em direcção a 1.ª Região Político-Militar, concretamente Nambuangongo, Bengo. No regresso é capturada com mais quatro mulheres guerrilheiras da luta anti-colonial (Engrácia dos Santos, Irene Cohen, Lucrécia Paim e Teresa Afonso). O terceiro consiste na transição do eu narrador à voz poética, que se solta das celas de prisão de Kakokol, em Kamuna, sanzala fronteiriça no território do Congo-Léopoldville, nessa altura baluarte da UPA. Um tempo depois, a diarista é transferida para o campo ou base de Kinkuzu. Os poemas terão sido escritos nas celas daquelas prisões.
*Marcelo Sebastião é investigador do Departamento de Investigação do Memorial Dr. António Agostinho Neto e docente universitário
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