Hoje 26 anos sem Leila Gonzales - texto da Revista Cult sobre essa militante MNU - Dra. Carla Rodrigues
Leiam Lélia Gonzalez
Ato público na Cinelândia, Rio de Janeiro, em 1983. Lélia Gonzalez discursa pelo Movimento Negro Unificado (MNU) (Foto: Januário Garcia)
Em sua passagem mais recente pelo Brasil, em outubro de 2019, em todas as atividades públicas, a filósofa estadunidense Angela Davis fez questão de nos lembrar da importância do pensamento e da atuação de sua colega brasileira, Lélia Gonzalez. “Leiam Lélia Gonzalez”, convocava ela no Auditório do Ibirapuera. Ou “vocês não precisam de mim, vocês têm Lélia”. Angela Davis estava se referindo à proximidade entre as duas feministas negras, que vem de longa data. Conviveram nos Estados Unidos no final dos anos 1970, quando Davis publicou Mulheres, raça e classe, agora traduzido no Brasil pela Editora Boitempo, enquanto Gonzalez apresentava “A mulher negra na sociedade brasileira” na Universidade da Califórnia em 1979. A esse artigo somam-se textos como “Racismo e sexismo na cultura brasileira”, de 1984, “A categoria político-cultural de amefricanidade” e “Por um feminismo afro-latino-americano”, ambos de 1988, ano marcante por ser o centenário do fim da escravidão.
Fundadora do Movimento Negro Unificado (MNU), Lélia Gonzalez teve uma atuação decisiva contra o racismo ao longo de sua trajetória política e intelectual. Por isso, abraçou o tema da desigualdade na educação – sem a qual a professora sabia que não haveria emancipação possível –, questão que ocupa parte de seus escritos. Lida hoje, a obra de Lélia parece pequena. São apenas dois livros completos, entre os quais se destaca Lugar de negro, em coautoria com Carlos Hasenbalg, e um punhado de artigos. O legado imaterial, no entanto, é imenso.
Sua atuação como intelectual mostra que foi uma feminista interseccional e uma feminista descolonial avant la lettre. Ela foi precursora em acrescentar à condição da mulher brasileira o marcador de raça, pouco tempo depois do campo feminista-marxista no Brasil ter começado a discutir como a diferença de classe afetava as mulheres – debate que estava posto pelo menos desde 1967, quando a socióloga Heleieth Saffioti defendeu a tese A mulher na sociedade de classe: mito e realidade. Lélia Gonzalez tem inegável pioneirismo na crítica ao racismo estrutural na sociedade brasileira e na articulação entre racismo e sexismo, o que fez dela uma aguda observadora da nossa situação colonial, antes mesmo que termos como colonialidade, decolonial ou pensamento ameríndio ganhassem destaque na pauta da intelectualidade branca, que aos poucos tem reconstruído outra concepção da dominação europeia que nos fundou e da violência intrínseca na formação do Brasil como Estado-nação.
É nesse contexto que Lélia Gonzalez propõe o conceito de amefricanidade, elaborado a partir de uma proposição do psicanalista lacaniano MD Magno, que por sua vez está dando continuidade à formulação de outra psicanalista, Betty Milan. Essa interlocução com a teoria psicanalítica, tão presente na obra de Lélia Gonzalez, é uma das características importantes de suas proposições críticas ao poder colonial. Em interlocução com o pensamento do psiquiatra martinicano Frantz Fanon – cuja obra sobre racismo e colonização é definida por ele como “estudo clínico” –, Lélia percebe muito cedo a necessidade de entrelaçar a desigualdade racial e social brasileira com as formações inconscientes, que ela observa serem exclusivamente brancas e europeias, operando uma denegação das nossas origens indígenas, latinas e africanas. É assim que ela identifica uma característica fundamental do “racismo à brasileira”: voltar-se contra negros é denegar, no sentido freudiano, nossa amefricanidade.
Assim, além de uma militante pela democracia – como tão bem demonstra o artigo de Flavia Rios nesta edição da Cult –, tema fundamental no momento em que o país tentava deixar para trás uma longa ditadura militar, Lélia Gonzalez percebeu de forma muito acurada que era impossível combater o racismo se as pessoas brancas não reconhecessem nossa condição colonial. Difícil tarefa, já que valorizar a origem europeia é parte do processo de denegar a latinidade e de sustentar o racismo contra negros e indígenas, a serem estigmatizados como “os outros”, “os bárbaros” ou, no vocabulário contemporâneo, “os bandidos” e até “os invasores”, mesmo que o termo seja usado em referência ao povo nativo. Há aqui um jogo de inversões do qual depende a opressão colonial: para afirmar-se no poder, os colonizadores precisam dominar não apenas os corpos, mas sobretudo o imaginário de cada povo dominado, atribuindo valor simbólico ao europeu branco, naturalizado como quem tem o direito de ocupar o lugar de dominação, e destituindo de valor simbólico todo não branco que fica destinado à subalternidade. Assim se constitui um duplo mecanismo, a afirmação da superioridade do colonizador e a alienação do colonizado.
Denunciar esse esquema a partir de diálogos com autores e autoras que vinham elaborando a questão exigiu da própria Lélia transformações radicais. Elaborar a ideia de “racismo por denegação da amefricanidade”, militar no MNU e circular em campos acadêmicos nos Estados Unidos, onde Angela Davis fazia sua pesquisa sobre os efeitos da escravidão na opressão das mulheres negras, tudo isso produziu transformações pessoais na trajetória de Lélia Gonzalez. Flavia Rios e Alex Ratts, seus biógrafos, contam como a mudança de Minas Gerais – onde nasceu, em 1935 – para o Rio de Janeiro, onde cursou o colégio Pedro II, graduou-se em História e Filosofia e fez carreira docente na Pontifícia Universidade Católica (PUC-Rio) e na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), é primeiro marcada por um processo de embranquecimento, como o alisamento do cabelo, um casamento inter-racial e a circulação em extratos sociais que a grande maioria das pessoas negras não podia alcançar.
Mas vieram os anos 1970, Lélia viajou pelo mundo, politizou-se e enegreceu. Para as mulheres negras, enegrecer significa, muitas vezes, em primeiro lugar abandonar o alisamento dos cabelos, movimento estético-político de libertação. Pode-se observar Lélia antes e depois do “desbunde”: “Gosto de fazer um trocadilho, afirmando que o português, o lusitano, não fala e nem diz bunda (do verbo desbundar)”. A peculiaridade do diálogo com a psicanálise exerce influência também na forma de operar os significantes: amefricanidade, ladino, pretoguês são algumas das intervenções, ao modo lacaniano, que faz funcionar seu pensamento na mesma direção de seu ativismo, inventivo em forma e conteúdo.
Sua ligação com a psicanálise foi formalizada em 1975, quando participou da fundação do Colégio Freudiano do Rio de Janeiro, e está presente, por exemplo, no uso que ela faz da categoria do infante, que se constitui a partir da análise da formação psíquica da criança: “Ao ser falada pelos adultos na terceira pessoa, a criança é excluída, ignorada”. Lélia Gonzalez propôs uma analogia entre a condição de infante e a condição das mulheres e das pessoas não brancas, que são faladas por um sistema de dominação que infantiliza, retira a humanidade e aniquila a condição de sujeito. Podemos localizar aí o hoje disputado conceito de “lugar de fala”, a recusa dos discursos esclarecedores e das narrativas da grande história colonial, encobridoras de um passado que pode “despertar centelhas da esperança”, como escreveu o filósofo Walter Benjamin. De fato, a restauração de Zumbi como herói da liberdade modificou a percepção sobre a história da escravidão no Brasil e acendeu centelhas de esperança de emancipação ao povo negro.
A atuação intelectual e política de Lélia Gonzalez se expandiu em diferentes campos e a levou a ser integrante da primeira formação do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM), criado ainda no governo de José Sarney (1985). A Gonzalez se atribui a interpelação de uma feminista branca a quem ela queria mostrar, na prática, o que estudamos nos livros: a oprimida reproduz as formas de opressão da qual é alvo. Num momento caloroso de debate, Lélia teria dito: “Enquanto você mantiver essa pose de sinhazinha, não tem conversa”.
Outro elemento de crítica ao sistema colonial em seu pensamento é o uso do termo ladino, designação de escravos e índios que já tinham alguma instrução e que, por isso, podiam realizar tarefas menos braçais. Mas ladino também é sinônimo de esperto, pilantra. Essa ambiguidade, somada à aproximação sonora entre ladino e latino, torna-se para Lélia uma estratégia para apontar a necessidade de recalque da latinidade e a correspondente ilusão de superioridade da elite branca intelectual, de quem a ideologia do opressor depende para ser reproduzida. “O racismo desempenhará um papel fundamental na internalização da ‘superioridade’ do colonizador pelos colonizados”, escreve ela, propondo a expressão Améfrica Ladina.
Sua interpretação da opressão colonial também antecipava ideias que depois seriam formuladas pelo sociólogo peruano Aníbal Quijano autor do conceito de colonialidade do poder, e desenvolvia-se em termos muito próximos do trabalho de Fanon: tratava-se de desmontar o mito da democracia racial brasileira sustentando que a criação de categorias raciais como indígena, negro e branco é uma exigência do sistema de poder colonial. Para isso, era preciso também enfrentar a construção histórica e naturalizada do negro passivo, obediente, submisso, subalternizado e lutar contra a narrativa de que a libertação dos escravos foi um gesto de bondade da princesa Isabel.
Em 1988, Lélia Gonzalez publicou o provocador “Por um feminismo afro-latino-americano”, em que interrogava: “Exatamente porque tanto o racismo como o feminismo partem de diferenças biológicas para estabelecerem-se como ideologias de dominação. Cabe, então, a pergunta: como se explica este ‘esquecimento’ por parte do feminismo?”. O questionamento tinha tanto a intenção de criticar o feminismo branco como o objetivo de demonstrar que havia racismo ali mesmo onde se estava lutando contra a discriminação, em favor de valores como liberdade e emancipação. Posição incômoda e difícil, sem dúvida, mas por isso mesmo tão potente e atual: “O racismo latino-americano é suficientemente sofisticado para manter negros e indígenas na condição de segmentos subordinados no interior das classes mais exploradas, graças a sua forma ideológica mais eficaz: a ideologia do branqueamento”.
Por fim, para seguir o conselho de Angela Davis – “leiam Lélia” –, vale a pena trazer alguns pontos de aproximação entre as duas filósofas. Em “A mulher negra na sociedade brasileira”, Lélia Gonzalez afirma: “Ser negra e mulher no Brasil, repetimos, é ser objeto de tripla discriminação, uma vez que os estereótipos gerados pelo racismo e pelo sexismo a colocam no mais alto nível de opressão […] Enquanto empregada doméstica, sofre um processo de reforço quanto à internalização da diferença, da subordinação e da ‘inferioridade’ que lhe seriam peculiares. Tudo isso acrescido pelo problema da dupla jornada, que ela, mais do que ninguém, tem que enfrentar”.
Também em 1980, Angela Davis publica Mulheres, raça e classe e escreve: “Assim como seus companheiros, as mulheres negras trabalharam até não poder mais. Assim como seus companheiros, elas assumiram a responsabilidade de provedoras da família […] carregam o fardo duplo de trabalho para sobreviver e de servir ao marido e a suas crianças, as mulheres negras há muito, muito tempo precisam ser aliviadas dessa situação opressiva”. Tratava-se de combater não apenas a violência do racismo, mas de reivindicar a especificidade do racismo contra as mulheres negras, carregado de um tipo de sexismo que ainda afeta negras e brancas de modo diferente.
O legado intelectual deixado por Lélia Gonzalez dificilmente pode ser medido apenas por seus livros. Para 2020, a Editora Boitempo anunciou a reedição de Festas populares no Brasil, livro de 1987, iniciativa que se soma a diferentes formas de resgate do pensamento de Lélia Gonzalez, tão radical quanto atual e original.
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CARLA RODRIGUES é doutora em Filosofia pela PUC e professora da UFRJ