Josué de Castro: o homem, o cientista e seu tempo
Manuel Correia de Andrade
NESTA PASSAGEM do século XX para o XXI a humanidade vive tempos difíceis; a exasperação de políticas neoliberais está provocando uma onda de desemprego, de acentuação das desigualdades econômicas e regionais, de desintegração de Estados e de ressurgimento de regionalismo e localismo agressivos. Parece que com o fracasso e o desmoronamento do sistema socialista, morreram as utopias, as ilusões de construção de um mundo melhor, onde haja maior distribuição dos frutos do trabalho e do desenvolvimento tecnológico e melhor relacionamento entre povos, nações e classes sociais.
Na verdade, com a queda do muro de Berlim, símbolo da divisão do mundo entre dois sistemas econômico-sociais, pensaram os cientistas sociais que havia terminado uma fase da história e a humanidade iria viver dias de paz e harmonia, atenuando-se as divergências de classes e as lutas entre Estados. A lembrança de duas guerras mundiais em um mesmo século, além de uma série de guerras locais, necessitava ser apagada da mente da humanidade; esperava-se a caminhada do mundo para a harmonia social e para a atenuação das diferenças de classe. O século XXI, previa-se, seria de paz e de confraternização entre os povos.
O que se observa, porém, é a exacerbação da exploração dos grupos menos favorecidos e a degradação do meio ambiente, com os grandes grupos econômicos obtendo lucros cada vez maiores, sem preocupações com o futuro da humanidade e do próprio planeta Terra; o que se prevê é o fantasma de um século XXI de miséria, de fome e de falta de elementos substanciais à vida humana, até da própria água. Já se admite que dentro de algumas décadas a luta pela água será tão intensa e agressiva como a atual luta pelo petróleo.
Diante de situação tão angustiante, o homem já está perdendo a capacidade de formular utopias. A preocupação com a produtividade e a rentabilidade, vem fazendo com que ele deixe de se preocupar com o bem-estar, a eliminação da fome e da miséria, do subdesenvolvimento, enfim.
Por que não se procurar novos caminhos, como em livro recente fez John Kenneth Galbraith (1996) ao preconizar a necessidade de se construir uma sociedade justa, apesar dos percalços que a humanidade enfrenta? Há de sempre se ter a esperança de ver uma luz no fim do túnel.
Uma das formas de que podemos lançar mão para construir um futuro, é estudar o pensamento e a ação de homens públicos, de cientistas e de políticos que dedicaram a vida enfrentando as maiores resistências e perigos visando alcançar tal fim.
No caso brasileiro, uma figura marcante de cientista, de professor, de homem público, de parlamentar é a do médico-geógrafo Josué de Castro, que teve grande influência na vida nacional e grande projeção internacional nos anos decorridos entre 1930 e 1974. É necessário fazer-se uma reflexão desapaixonada da sua vida e da sua obra, extraindo delas os ensinamentos que conduzam ao futuro. Ele dedicou o melhor do seu tempo chamando a atenção para os problemas da fome e da miséria que assolavam o mundo.
Analisando-se Josué de Castro, é necessário que se faça uma conexão de sua passagem pela vida, ligando-o ao tempo e ao espaço. Onde ele nasceu, como formou seu caráter e sua personalidade, o que o levou a refletir sobre o seu povo e o seu tempo, como procurou as ligações, em escalas geográficas, entre o local, o nacional e o internacional e como projetou o seu pensamento tanto nos meios acadêmicos como na sociedade, procurando influenciar líderes e liderados a refletirem sobre a realidade dos meados do século xx. Otimista, ele procurou projetar a sociedade que esperava ver se formar, se constituir, na qual a preocupação e o domínio do econômico fossem sendo substituídos pela preocupação com o social, com o bem-estar da humanidade.
No momento atual observa-se que a partir da década de 80 o econômico se hipertrofiou e procurou sufocar o social em suas manifestações, tanto com relação às condições de vida, quanto em suas manifestações culturais. Acredita-se, porém, que esteja sendo iniciada uma expressiva reação, quando se percebe que as elites econômicas e políticas começam a se amedrontar diante das implicações nefastas da destruição do meio ambiente, da expansão da pobreza e do desemprego, implicações que podem dar origem a uma convulsão social, e à quebra dos padrões sanitários com a volta até mesmo de epidemias que se considerava erradicadas.
A importância dos estudos sobre Josué de Castro aumenta diante da encruzilhada em que o país e o mundo se encontram, sobretudo se se faz uma análise de sua obra integrando-a no tempo em que ela pensada e escrita, ao sabor de grandes desafios. Sugestões foram feitas pelo cientista sobre os caminhos para a solução dos problemas do mundo, que ele esperava estar contribuindo para construir. Em 1951 foi designado presidente do Conselho Executivo da FAO – Food and Agricultural Organization. Em 1958 seu prestígio o fez eleger-se o deputado federal mais votado do Nordeste brasileiro. Mas, apesar de seu prestígio internacional, foi preterido de ocupar o Ministério da Agricultura no segundo governo Vargas pelas forças ligadas ao latifúndio (1950) e, depois, em 1964, quando se efetivou o golpe de Estado que procurou impedir o Brasil de fazer as verdadeiras reformas que necessitava para caminhar rumo ao desenvolvimento, teve os seus direitos políticos cassados e foi exilado.
Para se entender a figura que foi Josué de Castro, os serviços que ele prestou ao Brasil e à humanidade, as formas como ele entendia a necessidade de reformas, mantendo sempre o equilíbrio entre o possível e o ideal, entre a realidade e a utopia, achamos que este ensaio deva se desenvolver em tópicos, nos quais serão analisadas a formação e a origem do cientista, a sua ascensão a uma posição respeitável nas ciências e na política e a contribuição que ele deu, e mais esperava dar, à solução dos problemas sociais. É interessante fazer uma comparação entre o que ele fez e pregou e o que ainda necessita ser feito. Daí a última parte do ensaio; concluindo com uma análise da atualidade de suas idéias, com a reflexão de como elas podem ser utilizadas para nortear uma política em direção ao social, em um país que é hoje uma das dez maiores economias do mundo, mas onde há também concentrações econômicas e exageradas desigualdades sociais. Em um país onde é público e notório que em alguns setores da economia e em algumas áreas geográficas subsistem formas de exploração do trabalho escravo, mais de cem anos depois da abolição da escravatura.
Este trabalho não procura apenas traçar uma biografia, nem fazer um panegírico do grande pernambucano, mas salientar e analisar a atuação de um homem que soube lutar por um futuro melhor para o seu país e para a humanidade, usando como armas apenas o seu conhecimento, a sua capacidade de trabalho e a sua ação.
A formação
Nascido no Recife a 5 de setembro de 1908, de uma família de classe média de origem sertaneja, Josué de Castro estudou as primeiras letras com a própria mãe, professora primária, fazendo os preparatórios no Instituto Carneiro Leão e no Ginásio Pernambucano. O Recife era na época uma cidade provinciana, com população de aproximadamente 200 mil habitantes, que aliava ao fator de ser um centro administrativo – capital do estado – o de centro comercial de expressão em vista do seu porto, que atendia a grande parte da região nordestina. Como capital de um estado que se destacava como produtor de açúcar e de algodão, a sua política era controlada por ricos proprietários de terra, os quais estavam implantando usinas de açúcar (Andrade, 1989a) para substituir os velhos bangüês que começavam a entrar em decadência. Fora a indústria açucareira, havia também expressiva indústria têxtil.
Os grandes proprietários de terra dominavam a política e a economia de Pernambuco, aliados aos comerciantes exportadores dos produtos regionais e importadores de artigos de consumo. Na época havia grande influência da cultura francesa, sendo o francês a língua mais difundida entre as pessoas cultas; Paris era o grande centro de atração para as viagens das classes ricas cujos filhos iam para a Europa aperfeiçoar os seus conhecimentos.
Josué de Castro, homem de classe média, estudou no Recife em colégios como o Instituto Carneiro Leão, dirigido então pelo famoso educador, Pedro Augusto Carneiro Leão, conhecido como grande disciplinador e, depois, no Ginásio Pernambucano, o segundo mais antigo colégio secundário oficial do país por onde passaram escritores e políticos famosos como Epitácio Pessoa, Agamenon Magalhães, Luís Freire, Olívio Montenegro, Manuel Borba e muitos outros.
O curso superior foi feito na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, famosa por sua tradição de vez que foi das primeiras fundadas no Brasil no século xix, juntamente com as de Direito de Olinda – depois transferida para o Recife – e de São Paulo, a de Medicina na Bahia e as de Engenharia do Rio de Janeiro e de Ouro Preto. Nessas faculdades formavam-se os brasileiros que desejavam fazer cursos superiores e iriam comandar a vida do país no Império e na Primeira República. Concluído o curso em 1929, voltaria ao Recife para, como médico, iniciar suas atividades profissionais.
No Recife, dedicou-se à especialidade de fisiologista, iniciando tratamentos endocrinológicos. Ao mesmo tempo, ingressava como professor na Faculdade de Medicina, recém-fundada por Otávio de Freitas, médico famoso, que logo contou com o apoio de especialistas de grande competência como os irmãos João e Arnóbio Marques além de vários membros da família Coutinho. Já em 1932 Josué de Castro defendia tese em concurso para Livre-Docente intitulada O problema fisiológico na alimentação. Em seguida, publicava na Revista de Medicina de Pernambuco, um artigo que teve grande repercussão, sobre O metabolismo basal e o clima.
O Recife vivia período muito agitado com a ocorrência, em outubro de 30, da chamada revolução liberal que depusera o governador do estado, Estácio Coimbra, político da Velha República, ex-vice presidente (1922-1926) e um dos grandes usineiros de Pernambuco. Em seu governo tentara fazer um trabalho de modernização conservadora, com a modificação no ensino, na Escola Normal, de formação de professoras, sob a orientação do Pedagogo Antônio Carneiro Leão. Josué de Castro não estava ligado a tais movimentos; dedicava-se às atividades de pesquisa de campo, mas participava das preocupações culturais e sociais do momento vivido pela revolução, que deixou o poder à mercê da corrente ligada ao grupo canavieiro, liderada por Carlos de Lima Cavalcanti, e ao grupo ligado ao movimento tenentista, sob a liderança de Pedro Calado e do coronel Muniz de Farias.
Na ocasião as discussões políticas eram muito fortes. Havia pressão popular em grande parte influenciada pelos comunistas liderados por Cristiano Cordeiro, por tenentistas sob a liderança de Pedro Calado e velhos perrepistas, decaído com a revolução e aguardando a oportunidade da volta de Estácio Coimbra. O interventor Carlos de Lima Cavalcanti procurava uma posição de equilíbrio entre os usineiros e grandes proprietários que o apoiavam e as facções mais moderadas das correntes populares.
Josué de Castro não desenvolveu grande atuação política naquele período, embora suas idéias e preocupações o levassem a se interessar pelos problemas do povo. Estava envolvido nas pesquisas sobre as condições de vida do operariado pernambucano, trabalho desenvolvido pelo Departamento de Saúde Pública do Estado, que deu origem a um ensaio marcante sobre As condições de vida das classes operárias no Recife (estudo econômico de sua alimentação), publicado em 1935 no Rio de Janeiro, pelo Departamento de Estatística e Publicidade do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio.
No ensaio, ao estudar o problema alimentar da população operária do Recife, o médico Josué de Castro aplicou questionários em três bairros que considerou operários – Santo Amaro, Encruzilhada e Torre. Concluiu que o trabalhador habitava mal e se alimentava pior ainda, quer do ponto de vista quantitativo quer do qualitativo. Salientou que a maioria dos trabalhadores vivia com fome e morria de fome, dado o salário por eles recebido ser insuficiente para selecionar os alimentos de acordo com as calorias que forneciam e na quantidade que necessitavam. A alimentação básica era feita com feijão, farinha e charque, utilizando muito pouco o leite e o pão, não havendo consumo de frutas e verduras. Geralmente o operário pensava que comia para enganar a fome, mas a fome não se deixava enganar e as suas energias iam diminuindo, enfraquecendo-o, acabando com a sua capacidade de trabalho e aumentando a taxa de mortalidade.
Referia-se às habitações, mocambos construídos em palafitas, sobre os rios onde se desenvolviam os manguesais. Nos anos 30 e 40 foi muito discutido o problema dos mocambos, casas toscas construídas com palhas de coqueiro, pedaços de papelão prensado, folhas de flandres ou feitas de taipa, cobertas por folhas. Alguns autores consideravam tais moradias como ecológicas por estarem situadas próximas ao centro da cidade e serem bem arejadas. Outros as condenavam, pregando a sua substituição por casas populares de alvenaria, em áreas mais afastadas.
No ensaio em análise, Josué de Castro não participou da discussão, fazendo apenas referência ao tipo de habitação. Destacou prioritariamente o problema da fome, salientando a tese que desenvolveria posteriormente em livros, sobre o problema não ser apenas fenômeno biológico, mas sobretudo econômico e social. Não era o homem que procurava não comer ou comer mal, mas o sistema econômico que, para privilegiar os controladores dos meios de produção, pagava à classe operária salários insuficientes ao atendimento do mínimo de suas necessidades.
Numa época em que se atribuía o atraso e a pobreza às origens climáticas e étnicas, ele afirmava serem tais estigmas causados por razões sociais, estruturas impostas à sociedade. O ensaio seria publicado em 1936, no livro Alimentação e raça, no qual foi incluído um apêndice a respeito de inquérito sobre as condições do trabalho agrícola no Brasil, demonstrando a preocupação com os habitantes do campo, ampliando desse modo a gama de suas preocupações, passando do Recife para o Brasil.
Nos cinco anos que passou no Recife, Josué adquiriu prestígio nacional que o levaria a transferir-se para o Rio de Janeiro, então capital e centro cultural do país, onde assumiu – na então Universidade do Distrito Federal – uma Cadeira organizada pelo educador Anísio Teixeira quando a Prefeitura do Distrito Federal era exercida pelo político pernambucano Pedro Ernesto (Beloch & Abreu, 1984).
Nesse período, sem militância política bem definida, aproximou-se dos grupos de esquerda de vez que se preocupava com a solução dos problemas do povo através de modernização reformadora e não de simples utilização de técnicas mais modernas que maximizassem os lucros e esquecessem os problemas sociais. Sairia de Pernambuco no ano em que ocorreu o último movimento tenentista no Brasil (novembro de 1935), quando a Aliança Nacional Libertadora sob a liderança de Luís Carlos Prestes tentava impedir que Getúlio Vargas desse o golpe de Estado do qual resultou a implantação de regime corporativista grandemente influenciado pelo fascismo italiano. Josué de Castro, apesar de simpatizante da Aliança Nacional Libertadora e de ter artigos publicados em jornais a ela ligados, não se filiou a esta corrente política e não foi vítima de perseguições políticas no decurso do Estado Novo; durante esse regime ele serviu ao Governo na área de sua especialização, conviveu com o poder, como numerosos outros intelectuais brasileiros de então.
Consolidação do prestígio
e influência de Josué de Castro
No Rio de Janeiro, Josué de Castro trabalhou inicialmente na Universidade do Distrito Federal, organizada por Anísio Teixeira, que procurava implantar no país um sistema de ensino superior mais abrangente, não apenas profissionalizante mas que formasse quadros de pesquisadores e de cientistas desinteressados. Seria uma réplica, até certo ponto, do que Armando de Sales Oliveira fizera em São Paulo com a criação da USP.
Para compor o quadro docente da Universidade do Distrito Federal, Anísio Teixeira mobilizou expressiva quantidade de cientistas para que, juntos, intensificassem o ensino de matérias as mais diversas. Entre estes estavam figuras como Hermes Lima, Afonso Arinos de Melo Franco, Luís Freire, Gilberto Freyre e Josué de Castro, que se responsabilizaria pela Cátedra de Antropologia (Beloch & Abreu, 1984). A vida desta universidade, porém, foi curta em face do movimento revolucionário de 1935, ocorrido em Natal, no Recife e no Rio de Janeiro. Tal movimento fez com que o prefeito do Rio de Janeiro, Pedro Ernesto, caísse em desgraça perante o governo federal. Getúlio Vargas, que tinha verdadeira fascinação pelo poder, valeu-se da chamada Intentona Comunista para conseguir, de um Congresso amedrontado, uma série de leis de exceção que lhe desse margem para perseguir seus inimigos políticos, políticos que tinham coragem de se opor às suas ambições de perpetuação no poder ou que pudessem vir a disputar a chefia do governo.
Dentro dessa linha, dissolveu a Universidade do Distrito Federal e criou a Universidade do Brasil, em 1937, hoje denominada Universidade Federal do Rio de Janeiro, quando Josué de Castro ocupou interinamente a Cátedra de Geografia Humana, na qual se efetivaria em 1957, por concurso, defendendo a tese sobre Fatores de localização da cidade do Recife. Tudo indica que ao elaborar esta tese ele procurou demonstrar a importância que dava à sua cidade natal e, saindo do tema da fome que o tornara célebre, procurava desenvolver seus conhecimentos sobre assunto formalmente mais geográfico, ligado ao fator locacional.
Publicou vários livros, por editoras de prestígio nacional e internacional, como O problema da alimentação no Brasil, em 1933; Salário mínimo, em 1935; Alimentação e raça, em 1936; Documentário sobre o Nordeste e Alimentação brasileira à luz da geografia humana, em 1937; Science et technique, em 1938; Festa das letras, em colaboração com Cecília Meireles, em 1939, ano em que viajou para a Itália como professor visitante das universidades de Roma e de Nápoles, a fim de fazer conferências sobre os problemas de alimentação nos trópicos, assim consolidando o seu prestígio como cientista, especialista em nutrição, no plano internacional.
Josué de Castro, impressionado com o problema da fome, a princípio no Recife e em seguida no Brasil e no mundo, dirigiu seus estudos para a análise não apenas do problema da fome em si e de sua incidência sobre as pessoas mal alimentadas, mas das causas do problema e da ameaça que representava para a humanidade, das seqüelas que deixava nas populações mal alimentadas, com repercussões na esperança de vida, na produção e no desenvolvimento intelectual do homem. Partiu para os estudos de Geografia, a fim de localizar as áreas de fome endêmicas no mundo e as implicações provocadas pelas condições naturais e pela organização social. Preocupou-se também com os estudos da Sociologia e da Economia Política, que têm implicações acentuadas sobre o problema alimentar; daí a sua visão de totalidade do problema da fome e o norteamento dado tanto aos seus estudos quanto à sua ação política nos planos nacional e internacional.
A ação política de Josué de Castro desenvolveu-se a partir de 1940, quando o governo Getúlio Vargas criou o Serviço de Alimentação e de Previdência Social (SAPS) pelo Decreto nº 2.478, de 5 de fevereiro, como organismo subordinado ao Ministério do Trabalho, que ele instituíra com a vitória da Revolução de 1930. Além de Geografia Humana na Faculdade de Filosofia, Josué de Castro lecionava Nutrição e Alimentação no curso de pós-graduação da Faculdade Nacional de Medicina e foi designado primeiro diretor do SAPS. Era a oportunidade que passava a ter o professor e cientista de pôr em prática os seus conhecimentos teóricos. Para difundir tais conhecimentos e experiências, fundou a Sociedade Brasileira de Alimentação, que também dirigiu. Montava, desse modo, um forte esquema para o estudo da fome e dos problemas por ela causados no Brasil.
À proporção que atuava nos dois setores, em duas frentes – ensino e administração –, Josué mais se convencia da importância do conhecimento geográfico para a visão de totalidade da realidade brasileira, e para a pesquisa, relacionando a fome e a pobreza com as condições naturais e as estruturas sociais. A influência francesa na sua formação foi marcante, o que demonstrou em livro publicado em 1939 pela Livraria do Globo de Porto Alegre, intitulado Geografia humana, no qual aceitava os princípios fundamentais da geografia elaborados por A. Humboldt, K. Ritter, F. Ratzel e Vidal de la Blache, seguindo a mesma linha científica dominante na Universidade de São Paulo desde 1934, e no Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), fundado em 1939.
Tinha, porém, divergências com o grupo de geógrafos brasileiros que procurava apresentar a escola geográfica francesa como politicamente neutra, deixando as preocupações políticas e sociais para sociólogos e economistas, enquanto ele, tomando a fome como centro de suas preocupações, estendia seus enfoques aos aspectos étnicos, lingüísticos, religiosos e alimentares. Ao analisar estes aspectos, assumia também compromissos com os problemas ligados ao meio natural, demonstrando preocupações ecológicas, como já o fizera dois anos antes Gilberto Freyre em livro sobre o Nordeste (1937). Talvez tais divergências não o tenham aproximado mais da Associação dos Geógrafos do Brasil (agb), fundada em São Paulo por Pierre Deffontaines, em 1934, e ampliada pelo território nacional em 1945 (Andrade, 1986) liderada por Pierre Mombeig, Aroldo de Azevedo e José Veríssimo da Costa Pereira.
O seu livro Ensaios de geografia humana seria republicado em 1957, com um ensaio sobre o Recife – sua tese de Cátedra. Em 1939, publicou Fisiologia dos tabus, analisando certos hábitos alimentares brasileiros e a proibição da combinação de alimentos ou as restrições ao seu consumo, com base cultural, antropológica. É um autêntico ensaio etnográfico numa fase em que a Geografia Humana e a Etnologia estavam profundamente ligadas, sobretudo entre estudiosos franceses que dispunham de uma revista que reunia os dois ramos do conhecimento, dirigida por Pierre Deffontaines.
A Segunda Guerra Mundial (1939-45) atingiria diretamente o Brasil, país de grande extensão de costa mas sem dispor de rede ferroviária ou rodoviária que o unificasse, como ocorria com outros países continentais a exemplo do Canadá e dos Estados Unidos; a comunicação entre as suas regiões era feita através da navegação de cabotagem
O avanço do nazismo na Europa pelos alemães desorganizou o comércio internacional, trazendo sérios transtornos para o Brasil, em grande parte dependente da exportação de produtos primários. Inicialmente, o governo brasileiro ficou indeciso entre apoiar os países aliados ou as potências do Eixo. Definiu-se em favor dos primeiros depois do comprometimento maior dos Estados Unidos, que exigiram a implantação de bases no Nordeste do Brasil e uma política mais comprometida com os seus objetivos bélicos.
A economia nacional ficou desorganizada pelos acontecimentos e surgiram sérios problemas de abastecimento, o que levou o governo federal a criar, em outubro de 1942, o Serviço Técnico de Alimentação Nacional (STAN), entregando a sua direção a Josué de Castro. Ele não só tratou de reorganizar o abastecimento em escala nacional, como, preocupado sempre com os aspectos científicos do problema, criou a revista Arquivos Brasileiros de Nutrologia, que teve grande importância e aceitação. Dependente da Comissão de Mobilização Econômica, foi organizado o Instituto Técnico de Alimentação, cuja direção também foi entregue ao geógrafo-nutricionista. A questão alimentar passava a ter forte prioridade nas preocupações governamentais e já se começava a entender que os grandes problemas brasileiros não dependiam apenas de aspectos étnicos ou climáticos, mas do sistema social gerado pela colonização.
Em fevereiro de 1945, quando o Brasil já se encontrava envolvido na Guerra e sentia a proximidade do seu término, foi criada a Comissão Nacional de Alimentação junto ao Conselho Nacional de Comércio Exterior, com a finalidade específica de desenvolver estudos sobre a melhoria das condições alimentares da população brasileira e das medidas que poderiam propiciar o enriquecimento e a melhora da dieta nacional.
Josué de Castro desenvolvia paralelamente atividades político-administrativas e de pesquisas e estudos sobre a situação alimentar e da fome dominante no país, as quais o levariam a escrever o seu principal livro: Geografia da fome. A fome no Brasil, publicado em 1946. Nele, desmascarou o grande problema nacional, ou seja, o peso da fome no subdesenvolvimento brasileiro, mostrando-a não como causa, mas como conseqüência do processo de colonização a que o país fora submetido. As metrópoles de que o Brasil dependeu política e economicamente, e o próprio sistema de ocupação que propiciou a destruição da cultura indígena, desapropriaram os povos nativos, geraram a exploração voltada para a exportação baseada no latifúndio e na monocultura, as verdadeiras causas do subdesenvolvimento.
A fome era o resultado do sistema colonial mantido em suas linhas mestras mesmo depois da independência política do país (1822) e representava a matriz do subdesenvolvimento. Josué de Castro levava a constatações radicais uma série de idéias já antes esboçadas, e desencadeava contra ele a oposição e o ódio dos privilegiados que vinham detendo o controle do país desde o período colonial. Iniciaria, assim, uma guerra que o acompanharia até a morte, em 1974.
Ainda em 1945, ao ser concluída a Segunda Guerra Mundial, o Instituto Técnico de Alimentação foi incorporado à Universidade do Brasil e, no ano seguinte, transformado em Instituto de Nutrição da Universidade do Brasil (INUB). Josué atingia assim posição de destaque na hierarquia universitária de vez que, além de diretor do Instituto, participou do Conselho Universitário da UB e dirigiu o Departamento de Geografia da Faculdade Nacional de Filosofia. A posição alcançada na Universidade, a repercussão e o prestígio alcançados pelo livro A geografia da fome serviriam de alicerce para que partisse para vôos mais altos no cenário internacional e disputasse cargos eletivos em Pernambuco, como a representação do estado na Câmara dos Deputados.
Projeção e a ação internacional
A partir de 1946 Josué de Castro tornou-se um dos brasileiros de maior prestígio no país e no exterior. Geografia da fome ganhou grande dimensão internacional não só pela seriedade e audácia com que enfrentou o grande tabu – a fome –, mas denúncia que fez da situação em que vivia a maioria da população do país. Usando metodologia eminentemente geográfica, o autor analisou as suas características físico-naturais e sociais.
Tomando como base a análise dos sistemas alimentares, dividiu o espaço brasileiro em cinco regiões: Amazônia, Nordeste açucareiro, Sertão nordestino, Centro-Oeste e Sul, divisão regional divergindo de outra, feita em 1943 por Fábio de Macedo Soares Guimarães, que propunha grandes regiões naturais.
Ao dividir o país em grandes regiões sem se ater à divisão estabelecida anteriormente pelo IBGE, como se pode observar no mapa (figura 1), Josué procurou individualizar as suas características alimentares e, como conseqüência, as carências da população. Assim, na Amazônia, dominavam como alimentos básicos, a farinha de mandioca, o feijão, o peixe e a rapadura, observando-se carência de carnes, ricas em proteínas, e de verduras, ricas em vitaminas. No Nordeste açucareiro, haveria a predominância de farinha de mandioca, feijão, charque (carne seca) e aipim, hábito alimentar que resultava do sistema monocultor canavieiro implantado na região desde o século XVI e ainda hoje dominante. No Nordeste seco ou sertão nordestino prevalecia o feijão, o milho, a carne e a rapadura, constituindo regime alimentar melhor do que o da porção úmida, embora a região fosse também considerada como área de fome. No Centro-Oeste, ao qual ele incorporou o estado de Minas Gerais, considerado pelo IBGE como Sudeste, encontrou regime alimentar à base de milho, feijão, carne e toucinho, bem mais rico em proteínas e em gorduras. Finalmente, no extremo Sul, onde o regime alimentar era melhor organizado e as áreas de fome mais restritas, considerou como dominantes a carne, o pão – as condições naturais e as tradições dos imigrantes permitiram o desenvolvimento da cultura do trigo –, o arroz e a batata. Para o grande geógrafo, havia naturalmente certa diversificação em nível sub-regional e local entre a participação destes alimentos, mas em escala nacional a caracterização era das mais expressivas e fiéis.
Partindo desse quadro, Josué de Castro procurou caracterizar formas típicas de casos esporádicos, de crises epidêmicas e endêmicas. Para cada região, procurou indicar os principais problemas decorrentes de carências alimentares, como as protéicas nos dois nordestes, na Amazônia e no Centro-Oeste; as de cálcio, com manifestações de raquitismo, em todas as regiões; as de ferro, provocando anemias típicas, na Amazônia e no Nordeste açucareiro; carências de cloreto de sódio, expressivas na Amazônia e no Nordeste; as de iodo, responsáveis pelo bócio endêmico, comuns no Sertão nordestino, no Centro-Oeste e no extremo Sul; carências de vitamina A, responsáveis por moléstias como a hemeralopia, a xeroftalmia e a queratomalacia, com grande incidência em todo país, à exceção da Amazônia; carências de vitamina B1 eram expressivas em todo o país, excetuando-se a região do extremo Sul; a de vitamina B2, responsável pela arriboflaviose, era grande em todo país; a carência de ácido niotínico, responsável pela pelagra, que se expandia por todo território nacional; a de vitamina C, causadora de escorbuto, não era expressiva apenas na Amazônia; finalmente, a de vitamina D, ligada ao raquitismo, tinha maior incidência na região meridional.
Em seu livro, demonstrava que o brasileiro, de modo geral, apresentava carências alimentares mais ou menos fortes e diversificadas nos mais diversos pontos do território do Brasil, admitindo ser o problema da fome mais acentuado na Amazônia e nos dois nordestes do que no Centro e no Sul do país. A distinção entre os dois nordestes já fora consagrada pelos estudos de Gilberto Freyre (1937) e de Djacir Menezes (1937), quando ficou caracterizada a existência de uma porção de clima tropical úmido, na faixa litorânea, e de uma região de domínio do clima semi-árido, no interior. Tal distinção climática provocava grande diversificação no relevo, na vegetação, na hidrografia, nas formas de ocupação do solo, nos sistemas de exploração econômica e na própria civilização. Mesmo na cultura popular há grande distinção entre o matuto ou brejeiro – homem da região úmida – e o caatingueiro ou sertanejo – da área semi-árida. Em sua análise observa-se a existência de regiões nas quais há forte incidência de fome aguda e crônica e de uma faixa onde a subnutrição é mais atenuada.
Se a Geografia da fome causou impacto, sobretudo para os grupos conservadores que procuravam esconder os problemas da fome e da miséria no país, maior impacto seria provocado em 1948, com o lançamento do livro Geopolítica da fome, no qual o autor mudou a sua escala de trabalho, passando a analisar o problema no mundo inteiro. Chamou a atenção para o fato de a maioria da população do mundo estar subalimentada e, com freqüência, pessoas morriam de fome em todos os hemisférios, sobretudo no Sul, onde se localizavam os países então classificados como subdesenvolvidos. Desenvolveu também as teses de não se poder aceitar um maltusianismo mecanicista e de o aumento da natalidade se acentuar com a expansão da fome, de vez que o subnutrido é mais prolífero do que o homem bem alimentado. Alertou para a existência de uma fome oculta, representada pela deficiência alimentar em proteínas, sais minerais e vitaminas, afirmando que se a pobreza é a maior responsável pela fome aguda, a incidência de fome oculta se deve a problemas ligados aos sistemas de exploração econômica, aos hábitos alimentares consagrados, aos costumes e às religiões. Daí, a complexidade da problemática da fome e a necessidade de que intelectuais e governos se voltassem para o seu estudo e para o combate e a erradicação do flagelo. Em seguida, na parte dedicada aos matizes da fome, analisou a sua problemática no continente americano, incluindo o Velho Sul norte-americano; na Ásia, apesar da eficiência de sua agricultura tradicional, verdadeira jardinagem; na África, onde foi acentuada pelo impacto colonial; na própria Europa, saída então de uma guerra na qual foram cometidas as maiores atrocidades e que, na época da publicação do livro, procurava corrigir os impactos que a afligiam.
Como pensador conseqüente, não se limitou a dar o diagnóstico da fome do mundo, passou também a orientar como se poderia desenvolver a luta pela sua erradicação, concluindo o livro com um capítulo sobre a Geografia da abundância, no qual condenava e responsabilizava o sistema colonial de organização do território, imposto pela expansão da civilização européia no mundo tropical, e sugeria a necessidade de se desenvolver uma política de correção dos seus impactos negativos. Política que punha em choque os interesses das grandes potências e dos grupos nacionais dos países coloniais e ex-coloniais que mantinham orientação ligada à das metrópoles.
Os dois livros definiriam de forma inconteste sua posição política e disposição de luta. Divulgados em vários idiomas, fizeram crescer o respeito ao geógrafo pernambucano, contribuindo para que em 1951 ele fosse colocado na presidência do Conselho Executivo da FAO – Food and Agricultural Organization, sediada em Roma e que, no Brasil, fosse membro da Comissão Nacional de Política Agrária, criada por Vargas em 1951 e, dois anos depois, nomeado vice-presidente da Comissão Nacional de Bem-estar Social. Naquele ano, ele fora ainda candidato de Vargas, que voltara ao poder pelo voto, a Ministro da Agricultura, mas a forte oposição de grupos conservadores do Partido Social Democrático que apoiavam o governo impediu a sua ascensão ao Ministério.
Na presidência do Conselho Executivo da FAO, procurou desenvolver a orientação que já esboçara em sua ação como delegado do Brasil neste órgão da ONU e da qual resultara a realização, com apoio da Organização Mundial de Saúde, de conferências latino-americanas de Nutrição realizadas em Montevidéu em julho de 1948; no Rio de Janeiro em junho de 1950; em Caracas, em outubro de 1953. Como latino-americano, Josué de Castro procurava, sem abandonar a escala mundial, fazer convergir para o continente onde nasceu e desenvolveu suas pesquisas, as atenções mundiais para os problemas decorrentes da fome e do subdesenvolvimento dela decorrente e, ao mesmo tempo, por ela responsável. Na verdade, entre fome e subdesenvolvimento havia uma relação de causa e efeito, na qual um e outro problemas se interinfluenciavam e se autoalimentavam.
O prestígio do grande cientista brasileiro já estava consolidado nos fins dos anos 40 devido à divulgação de Geopolítica da fome que, com prefácio de Lord John Boyd Orr, fora publicado em 19 idiomas e lhe conferira prêmios, como o Roosevelt e o Internacional da Paz. O prefaciador do seu livro, além de alta autoridade nas organizações mundiais, era Prêmio Nobel da Paz. Isto porque a Paz era o ideal a ser alcançado com a extinção da fome e do subdesenvolvimento.
Vargas, que procurava dar sentido mais social à sua administração corrigindo erros que caracterizaram o seu governo anterior (1930-45), criou a Comissão Nacional de Política Agrária, que deveria estender aos trabalhadores rurais os direitos concedidos aos trabalhadores urbanos. Incluiu o médico-geógrafo na referida comissão e, em seguida, concedeu-lhe a vice-presidência da Comissão Nacional de Bem-estar Social.
Nos anos 50 os governos dos países ocidentais, temerosos pelo avanço do comunismo no Leste Europeu, na Ásia e na África, tentaram desenvolver políticas de redução das diferenças sociais, garantia de empregos, assistência previdenciária, melhoria nos níveis de educação e saúde, buscando frear a expansão da pobreza e da exclusão social. Acreditavam que a política de bem-estar era uma das melhores formas de criar uma era de equilíbrio social e de sustar a atração exercida sobre os povos pela União Soviética com a instituição das então chamadas democracias populares.
Josué de Castro foi eleito presidente do Conselho Executivo da FAO, que havia sido criada nos anos que se seguiram à Segunda Grande Guerra Mundial (1947), visando melhorar as condições das populações rurais, dos agricultores, e eliminar o perigo da fome que atingia cerca de dois terços da humanidade. Sua ação neste cargo foi marcada pela sugestão para a criação de uma reserva internacional contra a fome e pela idéia de uma campanha mundial contra a fome, à qual se dedicou após o ano de 1960.
Em 1954, resolveu integrar-se à militância política e candidatou-se a uma cadeira de deputado federal pelo estado de Pernambuco, pelo ptb (Partido Trabalhista Brasileiro). Foi eleito com expressiva votação; na Câmara, teve atuação de destaque, sempre defendendo as causas populares e logo foi guindado a vice-líder da minoria. Apoiou o programa desenvolvimentista do presidente Juscelino Kubitscheck (1955-60) e participou da Frente Parlamentar Nacionalista, que defendia uma política de defesa dos interesses nacionais contra a desnacionalização da economia e as influências extorsivas do capital estrangeiro, posição que seria motivo da forte perseguição por ele sofrida na ocasião do golpe de 1964.
Sua atuação parlamentar foi tão profícua que, em 1958, reelegeu-se deputado federal por Pernambuco como o candidato mais votado de todo o Nordeste. Defendeu então a reforma eleitoral que minimizasse a influência dos chefes políticos na decisão dos eleitores, através da utilização de chapa única a ser preenchida pelo eleitor na cabine indevassável. Durante este mandato, defendeu idéias democráticas e populares, como a extensão do direito de voto ao analfabeto e às praças de pré, o reatamento das relações diplomáticas entre o Brasil e a União Soviética, interrompidas no governo Dutra, em 1947, em aberto comprometimento do governo com as diretrizes da Guerra Fria. Quando a revolução cubana gerou certa instabilidade no continente americano e numerosos políticos conservadores se mostraram simpáticos à intervenção no país caribenho, Josué de Castro condenou qualquer interferência externa em Cuba, baseado no princípio da autodeterminação dos povos.
Não foi omisso também por ocasião da renúncia de Jânio Quadros à presidência da República, quando líderes militares e políticos conservadores tentaram impedir a posse constitucional do vice-presidente João Goulart, herdeiro político de Getúlio Vargas e considerado homem de idéias avançadas. Para que ele fosse empossado e pudesse conduzir as reformas chamadas de base, foi feita uma conciliação entre as várias forças políticas pela qual se implantou o sistema parlamentarista de governo; sistema inteiramente ausente da tradição brasileira desde a proclamação da República, em 1889. Assim, procurava-se impedir o presidente de encaminhar as idéias e diretrizes de modernização do país e de ampliaação da cidadania a uma porção maior da população brasileira. A mudança, imposta pela força não foi simpática à população, que se sentiu espoliada em suas aspirações. Logo desenvolveu-se a campanha em favor da realização de um plebiscito para definir se seria mantido o parlamentarismo, ou, ao contrário, seria restaurado o sistema presidencial. Josué de Castro, como parlamentar, lutou pela volta imediata ao sistema presidencialista, o qual foi restaurado em 1961 por esmagadora maioria de votos.
Com a devolução dos poderes presidenciais a João Goulart, iniciou-se a luta pelas reformas de base, entre elas a reforma agrária e a extensão dos direitos trabalhistas aos assalariados rurais, direitos que foram consagrados ainda em 1961, com a promulgação do Estatuto do Trabalhador Rural (Lei nº 4214, de 2 de março). Combatia-se também pela nacionalização de grandes empresas estrangeiras que controlavam serviços públicos ligados aos transportes e à energia, pela expansão do ensino público, pelo controle da evasão de capitais etc.
Tais reivindicações sociais amedrontaram as elites que controlavam o país desde a colonização portuguesa e estavam ligadas ao capital estrangeiro. Inquietaram também as grandes potências, principalmente os Estados Unidos, as quais temiam que uma revolução, semelhante à cubana se repetisse em países latino-americanos, sobretudo no Brasil, país que por sua importância territorial, populacional e econômica teria grande influência e repercussão nos países vizinhos.
Com as posições políticas que tomara e com o seu prestígio internacional, em 1962 Josué de Castro foi designado pelo governo brasileiro embaixador junto à Conferência Internacional de Desenvolvimento, com sede em Genebra, na Suíça e, em seguida, na reunião da FAO, em Roma. Voltava dessa forma ao cenário internacional e, em outubro do mesmo ano, renunciou ao mandato de deputado federal. Seu prestígio em Pernambuco era muito grande, tendo sido cogitado pelas forças consideradas de esquerda, em 1962, para candidato ao governo do estado. A candidatura não chegou a se concretizar e o governador eleito foi Miguel Arraes de Alencar.
O golpe ou contra-revolução de 1964 (Andrade, 1989) abateu-se sobre a maioria dos brasileiros de idéias progressistas. Governadores de estado foram depostos (Miguel Arraes, em Pernambuco e Seixas Dória, em Sergipe), além de parlamentares, técnicos, políticos e administradores. Uma sensação de terror expandiu-se pelo país e numerosas personalidades tiveram os seus direitos políticos cassados, como Josué de Castro, Celso Furtado, Darci Ribeiro, entre outros. Com a cassação de seus direitos políticos, Josué de Castro foi destituído do cargo de embaixador do Brasil junto aos organismos internacionais ligados à ONU sediados em Genebra. Não tendo condições de voltar à pátria, resolveu se estabelecer em Paris e continuar a sua luta contra a fome e o subdesenvolvimento e em favor da paz. Desejava para o mundo a paz que seu país lhe negara.
Em Paris teve seus méritos reconhecidos pelo governo francês, que o designou professor associado do Centro Universitário de Vincenmes, então recém-criado, lecionando também com grande mérito na própria Universidade de Paris. Ministrou aulas para alunos de pós-graduação no Instituto de Altos Estudos para a América Latina, então dirigido pelo geógrafo Pierre Mombeig que tinha grande conhecimento sobre o Brasil (onde viveu durante vários anos). Chefiou o Centro Internacional de Desenvolvimento, órgão que assessorava os países subdesenvolvidos, atuando sobretudo na África desenvolvendo trabalhos, especificamente no Marrocos. Presidiu o Comitê para a Constituição dos Povos e foi vice-presidente da Associação Parlamentar Mundial. Nesta fase, além da influência sobre os estudantes de todo o mundo que convergiam para estudar em Paris, Josué, sem diminuir a sua luta contra a fome e o subdesenvolvimento, canalizou esforços para os problemas da Paz. Não modificava o sentido de suas idéias, mas ampliava a atuação em favor de um mundo com maiores preocupações com o social, no qual fossem atenuadas as desigualdades que vinham se acentuando.
Os dois prêmios de projeção internacional que recebeu foram o Franklin Delano Roosevelt, concedido pela Academia de Ciências Políticas dos Estados Unidos em 1952, e o Prêmio Internacional da Paz, conferido pelo Conselho Mundial da Paz em 1954. Assim, o homem que tanto dera de si pela melhoria da situação dos povos do mundo e na maturidade se via exilado e excluído pelo governo de seu país, iria permanecer por dez anos em Paris, trabalhando sempre por um mundo melhor. Morreria na capital francesa a 24 de setembro de 1974. O exílio o abateu, face à ingratidão dos que detinham o poder em seu país, mas não esmoreceu sua capacidade de luta pelo desenvolvimento do ensino e da pesquisa, nem a sua ação para libertar os povos da fome e da miséria em qualquer hemisfério. Seu corpo foi trasladado para o Brasil e sepultado no Rio de Janeiro.
Após a descrição da trajetória do cientista e político Josué de Castro, é interessante, no ano do cinqüentenário da publicação da primeira edição do seu livro Geografia da fome, que se faça uma análise das suas idéias e da forma como se inserem no pensamento brasileiro na ocasião de sua formulação. Uma análise de como tais idéias, graças à aplicação do princípio geográfico da analogia formulado pelo mestre alemão Karl Ritter, puderam identificar aspectos semelhantes e idéias a serem desenvolvidas em outros pontos do planeta, de áreas tropicais e subdesenvolvidas. Também convém salientar a autenticidade do pensamento de um homem que soube desenvolver suas idéias em função dos desafios da realidade em que viveu, sem deixar de utilizar os conhecimentos científicos internacionais. Soube, como bom geógrafo, utilizar as escalas. Daí, as motivações que nos levam a analisar e a enfatizar as suas idéias, salientando a atualidade das mesmas no momento em que se observa grande desenvolvimento tecnológico com repercussões geopolíticas e geoeconômicas, mas se procura minimizar as repercussões geo-sociais.
Seguindo essa linha, procuraremos, no tópico a seguir, analisar as idéias de Josué de Castro e a atualidade de suas proposições.
As idéias de Josué de Castro
Durante toda sua vida Josué de Castro foi um grande batalhador, lutando sempre em duas frentes, a científica e a política. Embora centrando as suas preocupações no problema da fome, tendo sentido de totalidade não a isolou como um fato biológico, mas estabeleceu as suas conexões com o social, o econômico e o político. Não limitou suas reflexões e seus estudos ao Nordeste do Brasil, sua região de origem, nem ao nacional; estendeu-os ao internacional, compreendendo a solidariedade que teria de ser construída entre os pobres, hoje diríamos excluídos, de todo o mundo. Daí, as suas viagens constantes, a participação em reuniões científicas internacionais e as proposições e programas para a erradicação da fome, da miséria e do subdesenvolvimento.
Josué de Castro foi essencialmente um geógrafo, sempre salientando a importância do método geográfico e a influência de pensadores da área para compreender a realidade com que convivia. Tal método obrigava-o a interpenetrar as grandes formulações científicas com as observações de campo. Interpenetração que impedia, ao contrário do que ocorria com outros grandes pensadores, de ser levado à alienação, à formulação de projetos elaborados em outras regiões para a realidade do Brasil e do mundo dito subdesenvolvido. Daí ter procurado sempre captar os desafios brasileiros para elaborar projetos que procurassem atingi-los, a fim de encaminhar soluções viáveis para superá-los.
Com formação médica, ele partia sempre de desafios biológicos para chegar aos problemas sociais. Em vários dos seus ensaios salientou a importância de dois fatores biológicos, o sexo e a fome, como de grande repercussão sobre a sociedade. Chamando a atenção nos anos 30 e 40, quando escreveu os seus primeiros ensaios e publicou os resultados das suas primeiras pesquisas, quanto ao sexo e à fome terem importância vital para o homem e para a sociedade, fez com que as elites dominantes, temerosas de que a análise dos fatos ligados aos dois temas provocasse transtornos, procurassem cercar a um e ao outro como sendo verdadeiros tabus. Para os grupos dominantes de então era necessário que se contivesse as preocupações com os problemas sexuais, cercando-os de preconceitos, e se escondesse os problemas da fome, como se a sociedade da primeira metade do século XX tivesse mantido um equilíbrio nas relações entre sexos e estivesse em vias de erradicação da fome.
No início do século o grande cientista e médico austríaco, Segismund Freud, a partir do convívio com os seus clientes, elaborou o pensamento que procurava libertar o homem de uma série de preconceitos e tornar a sociedade mais equilibrada. Apesar de altamente combatido e de ter que se expatriar, a sua influência se expandiu pelo mundo e criou a psicanálise, hoje matéria obrigatória nos cursos médicos e objeto de discussões e debates em todo mundo. Com a difusão da psicanálise ocorreria a chamada revolução sexual, que traria grandes impactos e modificações na sociedade como um todo e ampliaria consideravelmente as conquistas feministas.
Certamente influenciado pelo pensamento e pela ação de Freud, Josué de Castro, nos meados do século XX resolveu aceitar o desafio da fome, em um país e em um momento histórico nos quais o tema era tabu. Pesou as conseqüências de sua atitude, sabendo que iria enfrentar grande campanha de contestação e de descrédito em seu país e em sua cidade.
No Brasil de então, havia a idéia generalizada de que a população se alimentava bem, havia grandes áreas a explorar, população pouco densa e civilização ainda em grande parte patriarcal. Admitia-se a ocorrência da fome apenas em períodos e em áreas atingidas por problemas climáticos, como o das secas periódicas do Nordeste. Secas que ocorriam aproximadamente em cada decênio, provocando fome, morte da vegetação, dos animais e dos homens, o que os levava a migrar em condições as mais precárias. Foram numerosos os livros que descreveram essas secas, entre outros os de Rodolfo Theophilo (1901), Felipe Guerra (1909), Graciliano Ramos (1937), José Américo de Almeida (1936) mostrando o drama do Nordeste. A crueza do drama provocou a implantação de programas governamentais de assistência às populações da área, baseados em filosofia assistencialista e divulgação do mito de a seca ser responsável pela pobreza e pelo subdesenvolvimento da região.
Josué de Castro (1946) e, posteriormente, Celso Furtado (1958) viriam salientar que a seca não era a responsável pelo flagelo, apenas o intensificava devido às condições econômicas e sociais que caracterizavam o sistema dominante na região. O sistema beneficiava os grandes proprietários rurais, os grandes comerciantes e os políticos, que chegaram a ser classificados nos anos 50 como industriais da seca (Callado, 1960). Daí Josué de Castro defender a implantação da reforma agrária e de sugerir o desenvolvimento de uma política de organização da assistência econômica e da comercialização da produção agrícola.
Em seu livro A geografia da fome, procurou caracterizar o problema da fome aguda e da fome oculta, relacionando as mesmas às regiões brasileiras. Daí, a divisão do Brasil em cinco regiões e a tentativa de caracterizar os tipos de alimentação e de fome em cada uma delas.
No caso da Amazônia, que compreende mais de 50% do território brasileiro, chamou a atenção para os problemas do clima – equatorial e úmido – e da pobreza dos solos, apesar de muitos estudiosos julgarem tais solos como ricos, face à presença da mais densa floresta equatorial do mundo. Josué de Castro, ao contrário, tinha conhecimento de que os solos equatoriais entram em rápido processo de lixiviação e de empobrecimento, tornando-se imprestáveis para a agricultura em grandes extensões. Apenas nos trechos de várzea inundados pelos rios durante as enchentes, quando neles são depositados sedimentos, e nas chamadas terras pretas de índio, manchas ricas em matéria orgânica, os solos se prestam à agricultura mais intensa.
Além dessa restrição de ordem natural, Josué de Castro chamou a atenção para o impacto da aceleração do povoamento durante o chamado ciclo da borracha, quando a pequena agricultura cabocla, migratória, foi desorganizada em face da atração exercida pela extração do látex, provocando maior demanda de alimentos e trazendo sérias transformações no sistema alimentar de caboclos e seringueiros. Tais transformações provocaram carências, dando margem a doenças que se tornaram endêmicas, como a beriberi, que após o colapso do ciclo da borracha foi praticamente extinta.
Outras áreas de fome seriam o Litoral e Mata nordestinos, às quais Josué de Castro denominou Nordeste Açucareiro, de clima quente e úmido, com duas estações bem definidas: uma chuvosa e outra seca, comportando maior diversificação de culturas tropicais. Com a colonização, porém, os portugueses introduziram e desenvolveram a cultura da cana de açúcar, que logo assumiu proporções de monocultura, impedindo a diversificação de produção e criando regime alimentar impróprio e causador da fome e de carências alimentares. O fisiologista Nelson Chaves, em pesquisas desenvolvidas na Universidade Federal de Pernambuco, continuadas por seus discípulos, constatou a ocorrência do kwashiorkor, provocado pela carência de proteínas na alimentação durante a infância, mal muito disseminado no mundo pobre e tropical com grande ocorrência na Índia. Assim, a fome do Nordeste úmido seria conseqüência natural da estrutura econômica e social dominante. Seria filha da colonização.
Outra área de fome salientada pelo médico-geógrafo é o Sertão nordestino, onde o problema não seria permanente, mas ocorreria de forma aguda nos períodos de seca, sobretudo quando se prolongam por vários anos. A ausência de monocultura imperial, como ocorre na porção úmida, e o domínio da pecuária contribuem para que haja expressivo consumo de carne, milho e rapadura (açúcar mascavo), quase sempre associado ao leite, alimento completo. Daí, a melhor dieta alimentar do sertanejo frente a do brejeiro ou matuto.
Finalmente, nas duas outras regiões do Brasil – Centro-Oeste e Extremo Sul –, as populações dispõem de melhor padrão alimentar, não ocorrendo áreas de fome endêmica, como na Amazônia e no Nordeste açucareiro, nem epidêmica, como no Sertão nordestino, havendo apenas áreas de carência alimentar. As condições climáticas, edáficas e o sistema de colonização com domínio da pecuária em algumas áreas e de colonização com pequenas propriedades em outras, contribuem para maior equilíbrio alimentar e melhores condições de vida.
Os estudos sobre alimentação e abastecimento levaram Josué de Castro a defender a realização de reforma agrária no Brasil, a fim de que o trabalhador rural tivesse acesso à posse e ao domínio da terra e pudesse desenvolver atividades agrícolas que atendessem tanto à demanda do mercado quanto ao abastecimento familiar. Na ocasião, após a Segunda Guerra Mundial, formava-se no país forte corrente reformista que procurava melhorar os padrões de consumo da população e tornar a sociedade mais democrática. Grupos reformadores e revolucionários defendiam o desaparecimento do latifúndio, sobretudo o improdutivo, que dominava as maiores porções do território ocupado e dispunha de condições de se apropriar das áreas em ocupação, objeto de expansão do governo federal, com programas de Marcha para o Oeste, de colonização em Goiás e de construção de uma nova capital federal em Brasília. Os grupos conservadores mais fortes e com maior acesso aos recursos e ao poder, combatiam a reforma agrária tachando-a de comunista e afirmando que a mesma provocaria o enfraquecimento ou a quebra da economia agrícola nacional.
A reforma agrária era uma espécie de carro chefe do programa das chamadas reformas de base, numa ocasião em que não só os então chamados esquerdistas mas também setores ligados ao empresariado nacional acreditavam que ela provocaria o crescimento do mercado interno e permitiria o aumento da demanda dos produtos industriais. O crescimento urbano acelerou-se de 1940 a 1950, quando a população urbana do país passou de 12.880.182 para 18.482.891, enquanto a população rural cresceu de 28.356.133 para 33.161.506. A população total aumentou de 41.236.415 para 51.944.397. Assim, o crescimento da população total foi da ordem de 21,61%, enquanto a da população urbana, 43,49%.
Na defesa da reforma agrária havia posições as mais díspares: estudiosos e autoridades defrontavam-se com realidades diversas dentro do território brasileiro e com programas de reformas diferentes ocorridas em outros países, inclusive no México e na Bolívia – a de Cuba só ocorreria na década dos 60, com a ascensão de Fidel Castro ao poder. Essas diferenças acentuavam-se em função do acesso aos mercados, das condições de clima e solo e dos sistemas de exploração dominantes. Além disso, a Constituição de 1946 determinava em seu art. 147 que as desapropriações de propriedades deveriam ser feitas mediante o pagamento em dinheiro. O dispositivo constitucional tornava impossível a política de reforma agrária face ao custo da terra, que a tornava onerosa, não havendo recursos suficientes para tanto.
Josué de Castro, com o equilíbrio que o caracterizava, afirmava "que era indispensável alterar substancialmente os métodos de produção agrícola, o que só é possível reformando as estruturas rurais vigentes. Apresenta-se, deste modo, a reforma agrária como uma necessidade histórica nesta hora de transformação social que atravessamos, como um imperativo nacional" (Castro, 1995:266). No mesmo texto faz contundentes críticas ao latifúndio, responsabilizando-o "pela existência das grandes massas dos sem-terra, dos que trabalham na terra alheia, como assalariados ou como servos, explorados por esta engrenagem econômica do tipo feudal. Por sua vez, o minifúndio representa a exploração antieconômica da terra, a miséria crônica das culturas de subsistência que não dão para matar a fome da família". Assim, ele não defendia uma reforma agrária apenas distributiva como pensavam alguns, mas uma reforma agrária moderna, racional, que levasse à agricultura familiar as assistências creditícia, agronômica, técnica e a organização da comercialização do produto. Queria uma sociedade agrária em que o produtor desfrutasse do produto do seu trabalho, e lutava por ela.
Nos anos 50 e 60 a questão agrária foi muito discutida no Brasil, recebendo o apoio de universitários, de partidos políticos, de alguns setores da Igreja Católica e de organizações da sociedade. Os trabalhadores rurais foram organizados em sindicatos e em ligas camponesas e realizaram greves e manifestações. O crédito agrícola, sempre concentrado nas mãos dos grandes e médios proprietários, teve uma pequena expansão entre os pequenos produtores e alguns direitos foram conquistados, como o Estatuto do Trabalhador Rural, que levou os direitos trabalhistas ao campo. Com o golpe militar de 1964 o movimento camponês ou rural foi reprimido e conduzido, em parte, pelos sindicatos controlados pelo governo e influenciados pela Igreja Católica. Assim, em 30 de novembro de 1964, o governo Castelo Branco promulgou o Estatuto da Terra, reconhecendo a força dos trabalhadores rurais, mas procurando conduzir a luta que se desenvolvia no sentido de uma transformação conservadora. Mesmo com esta orientação o Estatuto não foi aplicado e o Instituto Brasileiro de Reforma Agrária, então criado, teria maiores preocupações com a expansão e ocupação do Oeste do que com o atendimento às reivindicações dos trabalhadores rurais. Josué de Castro, já então com os seus direitos políticos cassados e exilado, não teria condições de participar da luta que continuava a duras penas e sob grande repressão.
A inexistência de reforma agrária e a grande concentração de renda levaram o país a avançar de forma inexpressiva na luta por melhores condições de educação e saúde, aspectos que muito preocupavam o geógrafo brasileiro. No início dos anos 60 o Brasil detinha uma das mais elevadas taxas de analfabetismo do mundo e o seu sistema educacional funcionava de forma precária. Até a Revolução de 1930, o país praticamente não possuía universidades. O ensino superior era ministrado por faculdades isoladas e profissionalizantes, pertencentes ao governo federal, a governos estaduais ou a instituições particulares. As pesquisas universitárias eram realizadas por professores abnegados e interessados em melhor conhecer o país. Em 1934, ocorreu a fundação da Universidade de São Paulo, no governo Armando de Sales Oliveira, e da Universidade do Distrito Federal, no governo Pedro Ernesto, e dirigida pelo pedagogo Anísio Teixeira.
Josué de Castro, que iniciara as suas atividades como professor universitário na Faculdade de Medicina, no Recife, logo foi convidado para lecionar na Universidade do Distrito Federal e, em seguida, na Universidade do Brasil, sucedendo ao professor francês Pierre Deffontaines na cadeira de Geografia Humana. Iniciaria assim na então Capital da República, em linhas modernas, o ensino da ciência geográfica.
As condições de saúde no país eram as mais precárias, sobretudo no interior, onde não chegava com certa regularidade a assistência médica. As moléstias eram numerosas e atingiam principalmente as populações do campo, mesmo depois de eliminadas moléstias epidêmicas ou endêmicas como a malária, a varíola, o cólera, entre outras. A tuberculose era uma constante, atingindo populações de baixa renda e mal alimentadas; doenças como o mal de Chagas, o bócio, a esquistossomose e a lepra, tinham grande incidência em algumas regiões. Josué de Castro abordou bem tais temas, demonstrando que, além de problemas sanitários, eram sobretudo problemas sociais, resultantes da má qualidade da alimentação e da inexistência de estruturas de saneamento. As denúncias feitas em seus livros e a proposição de reformas que diminuíssem a incidência desses males lhe trouxeram problemas que o levariam ao exílio.
Como geógrafo, Josué de Castro desenvolvia suas observações em várias escalas, preocupando-se tanto com o local quanto com o regional, o nacional e o internacional. Como salientou Sílvio Tendler em notável filme sobre Josué de Castro, ele sempre que voltava ao Recife, sua cidade natal, procurava ir aos bairros pobres e ver como viviam os moradores dos mocambos, nos mangues. Refletia e discutia o problema da população que morava em palafitas sobre as águas, tornando o tema assunto de um dos seus últimos livros (1967). Cremos que adotou a forma de romance, e não de ensaio, para ter maior liberdade em se expressar e também, talvez, por acreditar que um romance teria maior divulgação e influência. O Recife e os fatores que determinaram a sua localização, foram o tema de sua tese de cátedra à Universidade do Brasil (1957).
O Nordeste foi a sua preocupação constante, tanto na juventude, quando reuniu em livro ensaios sobre a região, quanto no exílio, quando admitiu que o Nordeste empobrecido e espoliado era uma região explosiva, escrevendo o livro Sete palmos de terra e um caixão. A mudança de escala do regional para o nacional é observada em Geografia da fome, no qual não procurou generalizar conhecimentos científicos sobre alimentação de forma difusa e universal, mas desceu à escala regional analisando as características alimentares e as carências delas decorrentes em cada uma das cinco regiões em que dividiu o país. A seguir, ampliando a escala para o mundo, procurou dividir a superfície da terra em áreas ricas e pobres, no contraste Norte/Sul, ligando o problema do subdesenvolvimento aos da fome e da pobreza. Seu desejo era escrever sobre a fome em cada um dos continentes, mas teve de reduzir a sua ambição científica a publicar um único livro sobre o mundo não-brasileiro: Geopolítica da fome (1948) no qual aplicou o mesmo método utilizado anteriormente. As conclusões são semelhantes, de vez que nele demonstra como a pobreza e o baixo nível alimentar dominantes nos continentes pobres não são resultado apenas da elevada densidade demográfica, mas sobretudo do processo colonial continuado pelo imperialismo e, mais modernamente, pela globalização que desviou a produção agrícola dos vários povos do objetivo do abastecimento regional ou nacional, para a exportação de produtos a serem consumidos no mundo dito desenvolvido. Como salientou Charles Bettelheim (1964), o problema não é praticamente de subdesenvolvimento mas de distorção da economia dos países colonizados. O problema não é do crescimento em sentido linear, mas do seu desvio.
A preocupação regional em Josué de Castro é da maior importância por contribuir para individualizar os casos e os problemas, conciliando medidas que se ajustem em níveis locais e regionais, sem pretender ser um único remédio a ser aplicado em territórios diferentes, a povos diferentes e a culturas diferentes. A adoção da regionalização é fundamental a toda pesquisa científica e a toda política a ser desenvolvida em função de melhorar os padrões de vida do planeta.
No que diz respeito à luta contra o subdesenvolvimento, Josué de Castro tinha posições bem definidas, presentes em seus livros e defendidas em sua ação política. Sendo um pensador com grandes preocupações sociais a ponto de admitir que o período entre as duas guerras mundiais foi o de domínio do econômico, enquanto aquele iniciado com o fim da Segunda Guerra Mundial seria o do homem social, procurou sempre desenvolver o seu raciocínio e a sua ação em função de uma política de bem-estar social. Tal política foi seguida na Europa por vários países, com a formação de governos trabalhistas, sociais-democratas, socialistas e com a expansão do sistema soviético na Europa Oriental.
Admitia que a humanidade caminhava para uma sociedade mais justa, com melhor distribuição das riquezas e com o atendimento de aspirações mínimas de educação e saúde. A paz era o seu objetivo final, por isto organizou a luta mundial contra a fome e procurou, na presidência do Conselho Executivo da FAO, desenvolver ações e programas que permitissem a maior racionalização da produção de alimentos e a formação de estoques que atendessem aos países e às regiões necessitadas em momentos de crise, tanto as provocadas pela natureza – cheias, secas, terremotos, erupções vulcânicas, pragas etc. – quanto as provocadas pelo desenvolvimento de políticas agrárias em determinados países ou de interrupções provocadas por guerras ou ações revolucionárias.
A sua visão em escala internacional o levaria a preocupar-se com os problemas dos mais diversos países e continentes, encarando a humanidade como única, embora heterogênea. Daí a sua preocupação não só com a problemática brasileira como com a dos povos de outros continentes.
Em Geopolítica da fome, aborda o impacto do imperialismo econômico em escala mundial, que determina o destino das terras agrícolas a determinados produtos, muitas vezes contrariando as necessidades dos países e provocando a agudização do processo erosivo em uma agricultura de exploração que maximiza a produtividade e a rentabilidade, minimizando a questão do meio ambiente. Chama a atenção para o fato de que a fome contribui para o incentivo à procriação e provoca a superpopulação: o pobre, o carente, se reproduz mais do que o abastado, o bem alimentado.
Em escala mundial Josué mostra que ao lado da fome aguda, clara, aberta, existe a fome oculta, provocada pela falta de proteínas, de sais minerais, de vitaminas etc. Desse modo, há a fome dos que não comem e a fome dos que comem mal, dos que não orientam a sua alimentação. Ao lado dessa classificação, caracteriza o problema da fome nos vários continentes, alertando para a ocorrência de fome nas Américas, consideradas no período da expansão colonial como um Eldorado ou um fracasso dos colonizadores europeus em muitas áreas do continente. Fracasso determinado pelo que Caio Prado Júnior (1946) chamaria de sentido da colonização, voltado sempre para a metrópole, sujeito da colonização, e de costas para a colônia, objeto da colonização.
Analisa a Ásia, berço de uma civilização de 40 séculos, continente em que, nas áreas úmidas, se desenvolve uma agricultura considerada verdadeira jardinagem, mas onde a guerra e a conquista levadas pelos países colonizadores desorganizaram os sistemas agrícolas com impactos irreparáveis sobre os regimes alimentares. A fome indiana tornou-se antológica, embora outras áreas de fome tão intensa fossem encontradas em outros continentes, como é o caso da África, espoliada nos séculos XV a XIX, com parte de sua população levada como escrava para as plantações da América, e a remanescente tendo de se submeter às sérias modificações nos sistemas agrícolas em detrimento de suas necessidades. É importante como exemplo o caso do Senegal, onde os colonizadores fizeram substituir em grande parte a cultura do sorgo, alimento básico da população, pela cultura do amendoim, produto de exportação, criando grandes deficiências no seu regime alimentar.
Na década de 40 Josué de Castro não poderia se furtar de salientar a fome na própria Europa, devastada pela guerra e vítima das truculências do domínio nazista. A desorganização de sua produção agrícola durante a guerra acarretou naturalmente a desorganização da agricultura, com impactos muito fortes sobre os sistemas alimentares. E o velho continente, colonizador, sofreu também as dores comuns aos continentes colonizados.
Desse modo, a visão de totalidade de Josué de Castro não se expressa apenas na análise da interdependência dos fatos e fenômenos, mas também na concepção geográfica e no desejo de construir um mundo só, heterogêneo em suas diferenças mas homogêneo em suas aspirações de bem-estar e de paz.
Resta ver até que ponto os seus sonhos se concretizaram, duas décadas após a sua morte.
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