(Mário Maestri]
Em janeiro de 1971, com 23 anos, cheguei ao Chile escapando da repressão militar no Rio Grande do Sul, semanas após a posse de Salvado Allende. Inscrevi-me no curso de História do Instituto Pedagógico da Universidade de Chile, um dos centros universitários mais combativos do país.
Em Santiago, deparei-me com cenário inacreditável, para quem vinha do Brasil, onde a esquerda sofria, em inícios dos anos 1970, uma segunda derrota, após a de 1964. No Chile, o mundo do trabalho, extremamente organizado e consciente, ocupava o centro da vida social e política do país. A classe operária possuía uma Central Única dos Trabalhadores, verdadeiramente unitária, e dois grandes partidos políticos, o Comunista, reformista, e o Socialista, com importante ala classista e revolucionária.
A classe operária chilena formara-se no contexto da mineração do salitre e do cobre e fortalecera-se com processo de industrialização por substituição de importações, bastante semelhante ao brasileiro. Ao contrário do Brasil e da Argentina, o operariado chileno jamais fora refém do populismo burguês. Os milhares de refugiados brasileiros e de toda a América Latina foram recebidos de braços abertos pela população de esquerda chilena, que levava a sério os versos de seu hino nacional que prometia ser o país “el asilo contra la opresión”. Muito logo, me senti em um meu país, onde pretendia assentar raízes para sempre.
O programa da Unidade Popular era extremamente avançado. Entre outras iniciativas, propunha a nacionalização do cobre, a estatização do sistema bancário, a ampliação da reforma agrária. Respondendo à sabotagem da produção e à atividades golpistas, os trabalhadores promoveram vasta ocupação de usinas, fábricas e fazendas. No Sul, os camponeses mapuches reconquistavam as terras perdidas nos séculos e décadas anteriores. Os sem-teto ocupavam terrenos urbanos para construir suas moradias. Logo, surgiram embriões de conselhos operários reunidos territorialmente em fábricas ocupadas. O governo da Unidad Popular limitou-se a legalizar e tentar por travas às ocupações que punham sob controle popular grande parte da economia do país.
Em 9 de outubro de 1972, o imperialismo yankee financiou vasta e longa greve de caminhoneiros, que deveria anteceder a queda do governo. Os grevistas patronais tiveram que interromper a paralisação pois o controle do país pelo mundo do trabalho radicalizara-se, tornando os patrões realidade disfuncional. Com o ensaio de golpe do dia 29 de junho de 1973, o Tanquetazo, milhares de indústrias foram tomadas, tremulando sobre elas bandeiras vermelhas. Soldados, marinheiros, carabineiros se prepararam para a marchar com a população. Golpistas assustados e certos da derrota procuraram refúgio nas embaixadas.
Situação revolucionária
Abria-se situação revolucionária no país, na qual os trabalhadores poderiam ter aplastado o golpismo praticamente sem derramamento de sangue. A população diante do palácio da Moneda pediu a Salvador Allende que fechasse o congresso. Ele se negou a fazê-lo, em nome do respeito àquela instituição, já totalmente a serviço do golpe. O país estava literalmente nas mãos dos trabalhadores. O imperialismo não tinha qualquer possibilidade de intervir no país, pois se encontrava acuado no Vietnan, de onde se retiraria, com o rabo entre as pernas, com a libertação de Saigon, em 1º de maio de 1974.
No mundo social, tudo que não avança, retrocede. Pouco mais de dois meses mais tarde, às seis horas da manhã de 11 de setembro, o golpe iniciava em Valparaíso. As 6:30, o Palácio da Moneda, no centro de Santiago, já era atacado por terra e pelo ar. Após se encerrar no Palácio com sua destemida guarda pessoal e alguns fiéis armados, Salvador Allende proferiu um último e poético discurso, no frigir dos ovos, uma verdadeira rendição antes do combate iniciar, conclamando a população a não resistir.
A população e trabalhadores ficaram literalmente desacorçoados. Núcleos preparados para resistir ao golpe assumiram posição defensiva, sendo aplastados isoladamente ou se desmobilizaram. No Pedagógico, junto a centenas de estudantes decididos a participar da resistência, ficamos como baratas tontas, sem saber para onde ir, o que fazer. Entretanto, as tropas decididamente golpistas eram poucas. Havia poucos dias, centenas de milhares de manifestantes haviam ocupado as ruas da capital em defesa da Revolução Chilena. Eram muitos os praças, os sub-oficiais e os mesmo oficiais legalistas e allendistas que atenderiam a uma conclamação à luta. A conjuntura terrivelmente propícia de junho se perdera, mas a possibilidade da vitória, com breve guerra civil, era grande.
As razões da vitória do golpismo militar, em 11 de setembro, há 46 anos, não são difíceis de compreender. E elas ajudam a compreender a realidade que vivemos hoje no Brasil. Como Getúlio Vargas, Salvador Allende era um político que jamais se propusera a extrapolar os marcos do ordenamento social burguês. Um pouco como o maior estadista brasileiro, ele preferiu o suicídio a chamar os trabalhadores à sublevação, o que teria ensejado a reorganização do país pelo mundo do trabalho. Por não tê-lo feito, condenou a população chilena a um inferno que se mantém sem alterações em suas estruturas até hoje.
Como baratas tontas
Altamirano, principal dirigente da ala esquerda socialista, sequer tentou se contrapor à ordem de rendição. O MIR, principal movimento de esquerda revolucionária, com significativa implantação no país, mandou sua militância recuar no final do dia 11, embriagado pelos sonhos românticos guevaristas de uma guerra longa e prolongada, após a derrota! Perdeu centenas de heróicos militantes na tortura e executados sem jamais conseguido passar ao contra-ataque, em um momento de enorme refluxo social e implantação plena da contra-revolução.
A bem da verdade, a rendição fora anterior ao 11 de setembro. E fora apoiada praticamente por toda a alta direção da UP, com destaque para o Partido Comunista. Salvador Allende se negara a reprimir firmemente a mobilização da oficialidade golpista contra o general Carlos Pratt, patriota e nacionalista, substituíndo-o por Pinochet. Concedera aos militares direitos de invadir - allenar - sindicatos, fábricas ocupadas, sedes de partidos, etc. à procura de armas. Tudo em nome do desarmamento do país.
Em comportamento que chegou às raias da insanidade, em agosto, semanas antes do golpe, pela rádio, Salvador Allende anunciou que mandara prender marinheiros e sub-oficiais da Armada por atividades extremistas, em colaboração com o MIR. Tratava-se, nos fatos, e ele sabia, de forte núcleo de marujos com vasto apoio em navios de guerra, alguns deles por eles controlados, que se haviam organizado contra os oficiais golpistas. Eram sobretudo allendistas. Com a denúncia, se desorganizou a disposição de resistência na Armada, no Exército, na Aeronáutica e nos Carabineiros anti-golpista.
Salvador Allende se preparava para anunciar plebicito que abriria caminho para a entrega do governo para a Democracia Cristã. Os militares golpistas teriam antecipado o golpe, do dia 17 para o dia 11, pois sabiam que a classe trabalhadora chilena não entregaria o muito que conquistara. Não havia retorno pacífico ao passado de submissão do trabalho ao capital. A violência da repressão era necessária para esmagar a autonomia, organização e consciência conquistada pelos trabalhadores e para pôr fim às expectativas mundiais. Havia que destruir, para sempre, a experiência popular vivida, tão intensamente, durante a Unidade Popular, literalmente destruindo enorme parte da classe trabalhadora chilena.
Um tempo de males sem fim
O golpe matou, torturou, perseguiu, obrigou ao exílio dezenas de milhares de trabalhadores, sindicalistas, estudantes, assalariados, intelectuais. Devolveram-se as fábricas e as fazendas ocupadas aos proprietários, muitos dos quais já viviam no exterior. Destruiu-se literalmente o setor o parque industrial chileno, com destaque para o automotivo e a moderna indústria eletrônica em constituição. Havia que fazer retroceder a industrialização e, com ela, a classe trabalhadora e cancelar através do desemprego estrutural sua memória dos tempos em que chegara a dois dedos da reta final.
O Chile foi a primeira nação latino-americana a conhecer as receitas da reorganização neoliberal da sociedade, desenvolvidas sob a direção do economista estadunidense Milton Friedman, da Escola de Chicago, cidade celebrizada pelos gângsters que produziu. Macri, na Argentina, e Guedes, no Brasil, são defensores tardios dessa proposta de arrasamento nacional e social, em prol do capital e das metrópoles imperialista, que já mostrou através do mundo as suas terríveis consequências.
Escancarou-se o país às exportações, destruindo a sua indústria manufatureira. Arrasou-se a educação pública, antes uma das melhores da América Latina. Hoje, os estudantes universitários saem das instituições com dívidas que os esmagam não raro por toda a vida. O mesmo ocorreu com o serviço médico público, fortemente privatizado. A reforma da previdência pinochetista fez a alegria do capital bancário e lançou na indigência milhões de chilenos idosos. É o sistema que Guedes se esforça em introduzir no Brasil.
Quando da chamada “redemocratização” do Chile, no contexto do tsunami neo-liberal de 1989, em um país em que a classe operária perdera sua força e centralidade, um Partido Socialista convertido ao social-liberalismo concluiu as privatizações que os militares não haviam realizado. Quem dirigiu o assalto aos bens públicos foi o ministro socialista das finanças, Carlos Ominami, meu antigo companheiro de militância no MIR, quando estudante. Dizem as más línguas que passa no Chile pelos ex-companheiros fazendo que não os reconhece.
Apresentado como exemplo de sucesso liberal, o Chile é um dos países do mundo de maior desigualdade social, após ser exemplo de distribuição relativa de riqueza nas Américas.. Sua economia depende patologicamente das exportações do cobre e ... de vinhos e frutas. Possui um forte déficit da balança comercial. O lucro do capital avança alegremente enquanto mais de trinta por cento da população vive na pobreza, e a projeto
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