Crônica - As árvores da minha vida - Roseli Arrudha



As árvores da minha vida

Algumas passagens da vida ficam guardadas para sempre num lugar muito secreto do cérebro e de vez em quando voltam à tona com a mesma importância do passado. Caminhamos para o futuro, mas o passado segue junto, vinculado a tudo ao redor. Mesmo depois de tantos anos da sua morte, lembro com saudade da minha avó Geny, uma avozinha portuguesa linda, tão delicada e ao mesmo tempo o baluarte que concentrava em si todo poder de coesão da minha família.

 Ela era o nosso ponto de convergência emocional, ao redor dela gravitávamos. Vovó Geny, árvore de raiz forte, dona de uma sabedoria peculiar, conhecia chás e remédios para todos os males e mesmo franzina era capaz de jogar o diabo do outro lado da rua para defender um filho ou proteger a sua casa. Pessoa carregada de histórias e sonhos, signos e símbolos que constituíam a base tangível da nossa estrutura familiar, vivia como uma borboleta entre a horta, árvores frutíferas, as primaveras coloridas, os santos de sua devoção mas também como uma loba feroz, pressentindo e evitando os perigos do cotidiano. Registrei na memória um dos seus hábitos, gostava de passar o café moído na hora num coador de pano e dizia que não era um coador qualquer e sim “o coador” feito com as próprias mãos com o capricho de um artesão e concluía "uma vida confeccionada à mão é muito mais saborosa". Como morávamos em uma cidade do interior e tudo era perto, todas as tardes, minha mãe, tias e primas marcavam presença na cozinha encantada da casa da vovó, uma verdadeira procissão, um ato religioso, quase sagrado.

 Em volta da mesa posta com toalhas bordadas com maravilhosos bicos de crochê, pão quentinho assado no forno a lenha e leite com café, os problemas da família eram debulhados. Naturalmente uma encontrava na outra a força vital necessária para superar crises caseiras, conjugais e até mesmo existenciais. Minha avómãe (tudo junto) como as fêmeas do reino animal, ensinava cada filha e cada neta a se precaver disso ou daquilo, a prestar atenção às coisas, a aguçar os instintos. Ela era o arrimo para as meninas da família e auxiliava a todas a celebrar e entender as estações cíclicas da vida. A sua presença bastava para fortalecer aquela que estava com medo da primeira menstruação ou primeira amamentação.

 Meus olhos infantis rastreavam tudo e a sensação que me invadia era que aquele universo caseiro amava a mim sem resistências e eu não estava desamparada. Nada me faltava, as tardes ensolaradas da minha infância possuíam a invisibilidade da satisfação, porque era a vida na sua melhor forma. Dentro dos meandros dos hábitos simples da minha família, tudo parecia ter uma saúde sem fim, a tradição do nosso nome e da nossa história estava ali, lama boa, terra fértil, estrumada, sem contaminações. Meu Deus que distância! Inevitavelmente tudo se transforma, a luta da mulher pela igualdade não mudou apenas a mulher, mudaram também as instituições humanas e as interpretações do mundo. Hoje, diante das imposições do ponteiro do relógio, é quase impossível encontrar uma brecha em nossas tumultuadas agendas para ir tomar café na casa de nossas avós.

 O problema é que mesmo inseridos em tempos pós modernos, intimamente sabemos que não conseguimos viver privados dos nossos mitos genealógicos. Na calada da noite nossa alma chora e reclama por amor e por mais expandida que seja a realidade, sempre procuraremos refúgio no ventre etéreo dos nossos laços ancestrais, porque essa força fertilizadora é o amor na sua mais profunda e incontestável manifestação. A nossa verdade mais íntima é que conseguimos nos manter completos não por amar, mas por ser amados. O avanço tecnológico não é capaz de nutrir nossos espíritos, é por meio da nossa herança sanguínea que recebemos uma célula divina que contém todos os instintos, conhecimentos e códigos necessários para nossa vitalidade física, mental e espiritual. 

As placentas que nos fecundam garantem a expansão dos nossos talentos e somente assim atingimos profundidade. E isto não é antigo e nem moderno, é eterno – há valores permanentes sem que os encontremos envelhecidos. Formamos uma rede de seres livres e conectados, o mundo ficou pequeno, acessível e não há problema no progresso, no avanço da ciência, da economia ou da física quântica, tudo isto faz parte de um processo que não tem mais volta, mas são os vínculos com nossas raízes mais profundas através do tempo e do espaço é que impedirão o declínio da raça humana.

 Árvore sem raiz apodrece e morre sem atingir a plenitude de florescer. Vovó Geny, vovó Malvina, mamãe Irene e as tardes mágicas conservadas num lugar muito distante e atemporal dentro de mim, alfas matrilineares, exuberâncias órficas das coisas, anfitriãs do mundo, para vocês, árvores da minha vida, escrevi este texto. 




Roseli Arrudha

escritora rio-pretense
Membro da Academia de Letras do Brasil -ALB
São José do Rio Preto-SP.

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