A cultura do estupro e a crise do capitalismo
Sofia Manzano*
No final dos anos 1970, a comunista negra estadunidense Angela Davis escreveu, em seu livro Mulheres, raça e classe (Boitempo, 2016), o que reproduzo aqui.
Como a base da licença para estuprar as mulheres negras durante a escravidão era o poder econômico dos proprietários de escravos, a estrutura de classe da sociedade capitalista também abriga um incentivo ao estupro. Na verdade, parece que homens da classe capitalista e seus parceiros de classe média são imunes aos processos judiciais porque cometem suas agressões sexuais com a mesma autoridade incontestada que legitima suas agressões diárias contra o trabalho e a dignidade de trabalhadoras e trabalhadores.
A existência generalizada do assédio sexual no trabalho nunca foi um grande segredo. De fato, é precisamente no trabalho que as mulheres – em especial quando não estão organizadas em sindicatos – são mais vulneráveis. Por já terem estabelecido a dominação econômica sobre suas subordinadas do sexo feminino, empregadores, gerentes e supervisores podem tentar reafirmar sua autoridade em termos sexuais. O fato de que as mulheres da classe trabalhadora são mais intensamente exploradas do que os homens contribui para sua vulnerabilidade ao abuso sexual, enquanto a coerção sexual reforça, ao mesmo tempo, sua vulnerabilidade à exploração econômica.
Homens da classe trabalhadora, seja qual for sua etnia, podem ser motivados a estuprar pela crença de que sua masculinidade lhe concede o privilégio de dominar as mulheres. … Quando homens da classe trabalhadora aceitam o convite ao estupro que lhes é estendido pela ideologia da supremacia masculina, eles estão aceitando um suborno, uma compensação ilusória à sua falta de poder.
A estrutura de classe do capitalismo encoraja homens que detém poder econômico e político a se tornarem agentes cotidianos da exploração sexual. A presente epidemia de estupros ocorre em um momento em que a classe capitalista está furiosamente reafirmando sua autoridade em face de desafios globais e nacionais. Tanto o racismo quanto o sexismo, centrais para a estratégia doméstica de aumentar a exploração econômica, têm recebido um encorajamento sem precedentes. Não é mera coincidência que, à medida que a incidência de casos de estupro tem aumentado, a posição das trabalhadoras tem piorado de modo visível. As perdas econômicas das mulheres são tão severas que seus salários, quando comparados aos dos homens, estão mais baixos do que há uma década. A proliferação da violência sexual é a face brutal de uma intensificação generalizada do sexismo, que necessariamente acompanha essa agressão econômica.
Dada a complexidade do contexto social em que o estupro acontece hoje, qualquer tentativa de tratá-lo como um fenômeno isolado está fadada ao fracasso. Uma estratégia eficaz contra o estupro deve ter como objetivo mais do que a erradicação do estupro – ou mesmo o sexismo – por si só. A luta contra o racismo deve ser um tema contínuo do movimento antiestupro, que deve defender não apenas as mulheres de minorias étnicas, mas também as muitas vítimas da manipulação racista das acusações de estupro. As dimensões críticas da violência sexual constituem uma das facetas de uma profunda e contínua crise do capitalismo. Como lado violento do sexismo, a ameaça de estupro persistirá enquanto a opressão generalizada contra as mulheres continuar a ser uma muleta essencial para o capitalismo. O movimento antiestupro e suas importantes atividades atuais – que variam de ajuda emocional e legal a campanhas educacionais e de autodefesa – devem ser situados em um contexto estratégico que tenha em vista a derrota definitiva do capitalismo monopolista.
Se não soubéssemos que esse texto foi escrito há quase 50 anos, diria que reflete exatamente a situação em que as mulheres brasileiras estão submetidas nesse exato momento. O que podemos tirar dessa aparente coincidência?
Quando Angela Davis o escreveu, os EUA, para enfrentar uma de suas mais profundas crises, em que o dólar era contestado como moeda por outras economias imperialistas e sua estrutura produtiva sofria forte concorrência dos novos padrões de organização do trabalho lançados pelo Japão, passavam por uma reestruturação produtiva que deixou as antigas cidades industriais, como Chicago e Detroit, repletas de desempregados. A crise foi contornada, na esfera econômica, através de uma forte política monetária com o aumento dos juros dos títulos públicos dos EUA e a recuperação do dólar como moeda forte. Na esfera política – mas não menos econômica – inicia-se o desmonte do Estado Democrático de Direito com a ascensão da Era Reagan – Bush.
Essas transformações estruturais consolidam, na principal economia do mundo, a dominância do capital financeiro na determinação da dinâmica capitalista. Angela Davis captura esse movimento, no momento mesmo em que ocorre e, de forma brilhante, relaciona os fenômenos sociais da violência sofrida pela classe trabalhadora, em especial pelas mulheres, aos movimentos do processo de acumulação de capital.
Esse tipo de análise é o que permite a combinação entre a luta das mulheres e a luta de classes, bem como a luta dos negros e a luta de classes.
Esse tipo de análise é o que permite a combinação entre a luta das mulheres e a luta de classes, bem como a luta dos negros e a luta de classes.
Aqui no Brasil, enfrentamos a proliferação do estupro agravada ainda mais com a cultura da violência da classe dominante brasileira. Não podemos deixar de relacionar, como faz Angela Davis para os EUA, esses fenômenos com a dinâmica do processo de acumulação de capital em nosso país. Infelizmente, a falta de compreensão política e a pouca formação teórica da maioria dos militantes das causas das chamadas minorias os impedem de fazer essa relação e tornam esses movimentos, apesar de importantes, insensíveis aos problemas fundamentais.
Mas não podemos perder tempo, nossas vidas estão ameaçadas, por isso, não deixarei de repetir:
O movimento antiestupro e suas importantes atividades atuais – que variam de ajuda emocional e legal a campanhas educacionais e de autodefesa – devem ser situados em um contexto estratégico que tenha em vista a derrota definitiva do capitalismo monopolista.
Em homenagem a Angela Davis.
*Membro do Comitê Central do PCB
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